Traduzir Moby Dick

Uma das principais obras da literatura americana, o romance de Herman Melville ainda traz grandes desafios aos tradutores
30/04/2020

Como traduzir um livro como Moby Dick? O começo do romance pode ser traduzido assim: “Me chamem de Ismael”; ou “podeis chamar-me Ishmael”; ou ainda “pode me chamar de Ismael”. Ou outra alternativa qualquer. São sempre múltiplas as opções. E todas conduzirão a caminhos pedregosos. Afinal, trata-se, para muitos, do maior livro gerado pela literatura dos Estados Unidos. A importância da obra gera a expectativa de uma boa tradução.

É uma leitura difícil, mesmo para o falante nativo do inglês. A tradução, portanto, será duplamente difícil.

O livro de Herman Melville teve algumas traduções no Brasil, entre elas as de Berenice Xavier (José Olympio, 1950), Péricles Eugênio da Silva Ramos (Abril Cultural, 1972), Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza (Cosac Naify, 2008) e Vera Sílvia Camargo (Landmark, 2012). Houve também adaptações — versões parciais e não literais —, algumas delas empreendidas por grandes autores, como Monteiro Lobato e Carlos Heitor Cony.

Moby Dick tem enredo complexo, não linear. A prosa de ficção é entremeada com longos e complexos trechos não ficcionais sobre as baleias e o então lucrativo negócio da caça aos cetáceos. A narrativa ficcional contém trechos que resvalam no fantástico e no naturalismo, com certo clima religioso permeando todo o texto. A atmosfera religiosa é propiciada, entre outros fatores, pela influência quacre, que embebe a Nantucket daquela época e que, em particular, embala a mente doentia de Acab.

Entre as dificuldades enfrentadas pelos tradutores de Moby Dick, sobressaem o estilo narrativo muito próprio do autor; o uso farto de linguagem arcaica e/ou não convencional, em especial vinculada à variante quacre e às falas dos estrangeiros que povoam o livro; as ideias preconceituosas e racistas expressas em diversas passagens; o emprego intensivo de gíria da gente do mar e de jargão náutico e específico da caça da baleia; a linguagem e o cenário relativamente distantes no tempo (meados do século 19); as referências históricas frequentes; e a abundância de nomes próprios.

Este último ponto merece comentário especial. Trata-se de um dos problemas clássicos da tradução: como traduzir os nomes próprios, em especial aqueles com raízes históricas? Em particular, como traduzir os originais “Ahab” e “Ishmael”? Os nomes certamente não foram escolhidos ao acaso, mas carregam pesado fardo simbólico. “Ahab”, em geral traduzido como “Acab” ou “Acabe” nas Bíblias brasileiras, é o sétimo rei de Israel. Retratado na Bíblia como rei vilão, idólatra, perseguidor de profetas (a propósito, Elias é outro personagem bíblico com correspondente na obra de Melville), Acab transfere carga metafórica ao capitão do Pequod. Já “Ishmael”, primeiro filho de Abraão, traduzido nas Bíblias brasileiras como “Ismael”, carrega o simbolismo do exilado e do sobrevivente, alegoria que adere com perfeição ao personagem-narrador de Moby Dick. Mas como transcrever esses nomes numa tradução brasileira contemporânea? Manter a grafia original inglesa? Usar a grafia bíblica tradicional brasileira? Nisso as traduções brasileiras variam: algumas preferiram manter a transcrição inglesa, como é hoje mais comum; outras optaram por usar a transcrição tradicional desses nomes para o português.

Detalhes à parte, corre no texto tensão entre, de um lado, a narrativa de aventura, superficial e mais transparente, referente à caça à baleia e a vida no mar; e, de outro, a narrativa alegórica, mais profunda e opaca, que explora os limites da loucura humana.

Para o tradutor, fica o grande desafio de recriar todos os matizes de um texto altamente complexo, em que convivem os mistérios do mar e as interferências do mal (baleia, loucura). Profundezas da tradução.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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