Traduzindo Quintana

O poeta Mario Quintana foi meticuloso nas traduções e rejeitava a pressão das editoras pela entrega rápida dos textos
Mario Quintana: “Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página”
01/09/2020

Mario Quintana, além de grande poeta, foi tradutor prolífico de autores de línguas inglesa e francesa, principalmente. Meticuloso nas traduções, rejeitava a pressão das editoras pela entrega rápida, argumentando que era preciso levar tanto tempo na reescritura quanto empregara o autor na criação do original. Traduzia não só como meio de vida, mas porque gostava dos livros que traduzia. Mais um dos autores de prestígio que militaram com brilho na tradução.

Como poeta e tradutor, era artífice das palavras. E sobre elas, claro, poetava e nos legava reflexões interessantes. Como o fez em seu poema Eu sou aquele, no qual nos diz: “consultai os Textos, no lugar competente —/ o que importa é que o Deus que eu tanto ansiava/ como uma luz que se acendesse de repente,/ era-me vestido com palavras e mais palavras/ e cada palavra tinha o seu sentido…/ Como as entenderia — eu tão pobre de espírito/ como era simples de coração?”.

A divindade não se lhe mostrava assim como uma visão, mas envolta em palavras; e, palavras, quem as decifraria? Pois cada palavra tem lá seus sentidos, uns ostensivos, outros mais ou menos ocultos, que só se revelam na alta interpretação, na tradução.

Palavras e mais palavras, a longa extensão do texto que parece nada ajudar no entendimento; todo o contrário, tende a aprofundar sobremaneira a já penosa desorientação. Tende a sobrepesar a já complexa tarefa do tradutor.

Assim também, em Tristeza de escrever, Quintana lamenta: “Cada palavra é uma borboleta morta espetada na página:/ Por isso a palavra escrita é sempre triste…”.

Aqui o poeta nos remete à noção de ressecamento do significado que acontece na passagem da ideia ou da palavra falada, com todo o seu colorido típico da imprecisão e da mescla de impressões sensórias, para algo meramente visual, unidimensional, morto no papel. Ali a tristeza se instala, na aridez da tinta incrustada no papel, na desolação de um texto sem leitor. Ali a palavra perde o frescor que lhe animava nas ondas sonoras e nas múltiplas expressões faciais, gestuais e mesmo musicais e oloríferas. É todo um mundo de sensações que se perde. É o voo da borboleta que se suspende, suprimindo-se todo o seu movimento e graça. Não seja de admirar a tristeza do poeta.

Mas aquele texto morto, borboleta espetada na página, ainda clama por expressão, tradução, ainda que, lhe pareça, até as sombras dos sentidos já se hajam recolhido. Sentidos que se consomem pelo uso e soçobram na obscuridade. Sentidos que se deixam ficar esquecidos, porém latentes no tecido espesso do texto. Sentidos que se desfazem até romper os limites entre o real e o onírico, ínfimo espaço onde pode operar a criatividade do leitor obstinado e do tradutor laborioso.

Em seus momentos derradeiros, confrontado com a tradução — seu fim, mas única esperança de futuro —, o original já não pode entregar tudo o que encerrou um dia. Há ali certo olvido incontornável.

Mas a borboleta morta, espetada na página, ainda será capaz de alçar um derradeiro voo? Sob cinzas frias do texto antigo haverá brasa que se possa reavivar?

A noite do texto é longa e gelada demais, à espera do leitor, da tradução, de novos voos. Poderia haver noite maior, morte mais absoluta, queda no abismo soturno de si mesmo, do que o silêncio das palavras? A perda de todos os sentidos? Na noite grande, “morrer é simplesmente esquecer as palavras”. Ainda hoje reverbera a sentença do poeta.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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