Traduzindo Nietzsche

A tradução que Paulo César de Souza apresenta de “Além do bem e do mal” é dessas que buscam explorar ampla porção do repertório que o original apresenta
Friedrich Nietzsche, autor de “Além do bem e do mal”
02/11/2020

Há traduções e traduções. As primeiras, rasantes mesmo se corretas, e ainda que sublimes, pairando em rés pelo dorso do texto, vertendo escorreitas em novas lâminas o original. As segundas, sobranceiras, alçando voo, acrescentando ao original as ponderações do tradutor, instruindo a leitura, tomando pela mão o leitor, levando-o a mais refletir e a entender melhor o texto, embora com certo sacrifício estético.

As duas traduções podem ser excelentes, claro, quando guiadas pelo senso de responsabilidade e pelo domínio da linguagem, em sentido amplo. O segundo tipo revela de maneira mais ostensiva o denodo do tradutor na busca da expressão mais rematada, oferecendo mais recursos ao leitor que pretenda aprofundar-se no texto. O primeiro pode abrigar o mesmo esforço tradutório, mas embutido nas sutilezas do texto e nem sempre visível ao leitor mais ligeiro.

A tradução que Paulo César de Souza nos apresenta de Além do bem e do mal, de Friedrich Nietzsche, pertence ao segundo tipo. A obra desse tradutor — que em si é um texto autoral — é dessas que buscam explorar ampla porção do repertório que o original apresenta, dele extraindo horizontes estendidos, que não caberiam numa tradução linear. Procura também explorar, em larga medida, a intertextualidade que se pode encontrar em traduções anteriores, para línguas várias, do mesmo original — algo comum em textos clássicos ou famosos.

Nesse processo, Paulo César de Souza estabelece, no texto em português e em suas numerosas notas, interessante diálogo entre original, suas traduções e seus tradutores. Trata-se de interlocução intensa e interessante, ainda que em ambiente de distanciamento e diacronismo. Parte dessa interlocução compõe, no dizer de Souza, “um diálogo subterrâneo com outros tradutores”.

De fato, o tradutor brasileiro de Nietzsche nos apresenta um texto fartamente enriquecido com 180 notas dispostas no final do volume. Em introdução às notas do tradutor, Souza delineia a natureza e os diferentes objetos dos apontamentos. São notas informativas, que buscam lançar luz sobre questões históricas, literárias, filosóficas e mitológicas — aliás, abundantes no original. E também notas de caráter filológico, que procuram determinar com maior exatidão o significado de termos e locuções; discorrer sobre questões gramaticais e recursos retóricos empregados pelo autor; e justificar as escolhas do tradutor. O conjunto conforma útil guia de leitura, para quem quiser mergulhar um pouco mais fundo não apenas no texto de Nietzsche, mas também no processo que resultou na construção do texto em português.

Souza também aponta, no mesmo texto de apresentação das notas, as traduções que usou como fontes de pesquisa. São textos em português europeu e brasileiro, espanhol, italiano, francês e inglês, os quais são citados com frequência nas notas. O tradutor também menciona as edições do original utilizadas como base, oferecendo, assim, panorama textual bastante completo para leitores meticulosos.

Enfim, a impressão que se tem ao ler a tradução e os textos acessórios de Paulo César de Souza é que ele adere — de maneira mais ou menos consciente, pouco importa — às primeiras palavras de Nietzsche em Além do bem e do mal: a vontade de verdade. Nota-se, na obra do tradutor, a vontade de verter o original com apego à verdade, apego esse que se revela tanto na adesão à pele do original quanto no mergulho em sua carne e ossos. Resultado, sem dúvida, de extenso trabalho de pesquisa.

Eis aí por onde deveria começar toda tradução: vontade de verdade. Algo que talvez ainda nos faça, tradutores, correr não poucos riscos.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho