O original verte sentidos, haja olhos e ouvidos para perceber. De um momento a outro, a mudança. Sentidos atentos para captar cada variação, de átimo a átimo, de letra a letra. A oscilação dos sentidos, o movimento quase imperceptível da letra que se desloca. A percepção da mudança deve ser o principal instrumento do tradutor — a sensibilidade ao câmbio mais sutil.
Um texto deixa sua impressão delével sobre o outro. O original sobre a tradução. Na sucessão de textos, a fila-dominó que vai do original à tradução e da tradução primeira a novas traduções. Quem poderia chegar ao início dessa série ou perseguir seu final?
A repetição da experiência original é impossível. Daí ser a tradução impossível (pois não poderá jamais reproduzir de maneira absolutamente fiel — à la Pierre Menard — o original). Mas também possível (porque existe e não pode ser negada, mesmo que errada). Erremos, traduzamos.
A solução literal não é solução. Certamente não será solução literária. Texto literário exige tratamento literário, não literal. Tal princípio, claro, tem que se aplicar à tradução. Já dizia Octavio Paz que tradução literal não é tradução: seria antes um glossário disfarçado de texto, em detrimento da qualidade. A tradução — pelo menos do texto literário — sempre deverá ser atividade literária.
Traduzir não deveria ser tresler o texto, profanar por profanar o original. Não será ler de qualquer jeito para traduzir a qualquer preço. Exige jeito e exige talento e exige paciência.
Há que procurar — como proporia Erwin Theodor — o equilíbrio lingüístico, estilístico e espiritual? Forte demais talvez a proposta, por sobrepor exigência pesada a tarefa já por si demasiado complexa. Mas tem-se que buscar equilíbrio, algum tipo de equilíbrio. Não do tipo perfeito, irreal. Dinâmico seria aqui, quiçá, o adjetivo ideal.
A tradução verte sentidos que podem reverter ao original, mas isso ninguém diz. Quem já traduziu e recorreu a outras traduções — em qualquer língua, não importa — poderá entender o que digo. A tradução rebate, reverbera na mente e nos olhos, embota a percepção. Confunde. Mas a confusão está na própria raiz da tradução. Confundamos… diria Deus de si para si ao ver a audácia de Babel.
A impressão legada pelo original desborda, não cabe na tradução. Incontível em qualquer tradução. Incontível em qualquer conjunto de tantas traduções do mesmo texto, todas diferentes do original e entre si. Como conter tanta proliferação? Nem mesmo as garras mais cortantes do normativismo mais duro.
Repetir a tradução é impossível, tanto quanto é impossível repetir o original. Tente você traduzir o mesmo texto duas vezes. São tantas as idéias novas que perpassam e tocam notas distintas — novas melodias sobre velhos argumentos.
O original não é literal nem em relação a si mesmo, por depender de um intermediário para fazer sentido. A única literalidade — absolutamente antiliterária — é aquela proporcionada pela máquina copiadora.
Qualquer leitura implica algum tresler. Erros fazem parte dessa aventura literária chamada tradução — e são parte integrante e inseparável da própria literatura original.
A busca do equilíbrio vai nos desgastar até o fim, mas não nos fará desanimar. O tradutor vence o texto pelo cansaço. Desfia frase por frase, palavra por palavra à procura do ponto médio — à beira da perfeição.