Tradutor, esse grande amigo do alheio

Grande amigo do alheiro, esse tradutor. Vai buscar lá fora, no que não é seu, a substância que lhe falta e, portanto, tanto é desejada
01/04/2002

Grande amigo do alheiro, esse tradutor. Vai buscar lá fora, no que não é seu, a substância que lhe falta e, portanto, tanto é desejada. O tradutor é o ladrão, e quanto menos se arrepende, melhor. Tradutor bom não é o bom ladrão, é o que rouba, não o que furta. É o que arranca à força, subtrai com violência e sem dó. Para deixar, depois, talvez, algum legado.

Diz o professor de teoria literária Sérgio Bellei que na própria essência da tradução está o ato vilipendioso de despojar, assenhorear-se do que é do outro. Nessa apropriação, indébita às vezes, o tradutor se afirma como “um homem de seu tempo e também de seu país”. Tira de um tesouro alheio, sacode, pule, escolhe bem, desbasta um pouco aqui, aplaina outra quina ali, depois mostra como algo seu, de seu tempo, de sua cultura. Como não chamá-lo ladrão, e como conter o elogio?

Rouba não só idéias, mas palavras. Ladrão, com saques enriquece a língua sua e dos que lhe apontam o dedo. John Dryden, sutil, dizia apropriar-se das palavras estrangeiras. Se há escassez aqui, por que não ir buscar algo que sobra ali? “Não transporto para fora o tesouro da nação, o qual nunca retornará: mas o que trago da Itália, gasto-o na Inglaterra: aqui ele permanece, e aqui circula; pois se a moeda é boa, passará de mão em mão. Eu negocio tanto com os vivos como com os mortos para o engrandecimento da nossa língua pátria…”. Haveria ideal mais puro, roubo mais bem intencionado que esse?

A postura do tradutor é tanto mais autêntica e corajosa quanto mais assume sua face marginal e corrupta, seu apetite desmedido e desbragado pelo alheio, as palavras e as idéias. Sem falsos escrúpulos nem tímidos comedimentos. Melhor é a postura atrevida de “mau selvagem”, como diria Haroldo de Campos. A postura do antropófago que come e lambe os beiços, satisfeito e ao mesmo tempo os olhos injetados já querendo mais.

Com os olhos vidrados de lunático, ainda esbraveja, oswaldiano, depois do banquete canibal: só estou interessado no que não é meu. Roubar e devorar, sem dó, jogando no alforje o que não der para comer na hora.

Esquecer tudo sobre automatismos de tradução, cópias mecânicas e que tais. Transgredir, não transigir, não respeitar o autor, mas roubá-lo, despojá-lo e, se possível, devorá-lo. Negociar com vivos e mortos, matar o autor, descarná-lo e chupar-lhe os ossos, com gosto, depois arrotar, cuspir tudo na cara do leitor. Renovar o sabor do velho e do rançoso, triturar no liquidificador, apurar o caldo e despejar na forma instável do texto.

Um tradutor malcriado, enfim. Pode até ser humilde, como tanto gostaria o Paulo Henriques Britto, mas mal-educado, grosseiro, ou, de outra, travesso, manhoso. Pastoso e pegajoso, ladrão difícil de apanhar.

Cometer até a suprema conquista abjeta: roubar o lugar da filha no coração da sogra. Dar o nó na própria Olímpia, a sogra de Aluísio de Azevedo. “O genro está para a filha assim como o tradutor ou o compositor tipográfico está para o escritor.” Olímpia não economizou no agravo. Pisou, judiando. Igualando o tradutor ao devoniano compositor tipográfico, Olímpia torna-se ao mesmo tempo uma maldita e a esfinge a destruir, quem sabe a devorar. Suplantar a filha, destronar o escritor e erigir-se ídolo em seu lugar. Meta mais elevada para todo tradutor.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho