Tradução: texto sobre texto, arte sobre arte

Ontem (um dia qualquer), na exposição de Vik Muniz: foi Warhol quem demonstrou que a cópia da cópia é sempre original
01/03/2014

Ontem (um dia qualquer), na exposição de Vik Muniz: foi Warhol quem demonstrou que a cópia da cópia é sempre original. Também ontem, na Folha de S. Paulo (Luciana Villas-Boas), a tradução como glória máxima do escritor brasileiro. A glória da chancela do estrangeiro.

Tradução não é exatamente cópia de cópia. Nem sequer cópia é. Mas poderia até parecer — e o é efetivamente, para muitos. As obras de Vik Muniz, mesmo as que parecem cópias, tampouco o são. Cópia é xerox. Não se trata disso. Ali existe arte, arte em seu sentido mais profundo. A transformação de um modelo (que pode ser vivo ou não) em obra de arte. O modelo também pode ser outra obra de arte (que, inevitavelmente, já teve por modelo outro objeto qualquer): cópia da cópia? Na verdade, arte sobre arte.

Na tradução, dá-se o mesmo — mutatis mutandis. Tem-se ali o objeto, o modelo, o original — aquilo que deve ser não copiado, mas transformado, com arte e técnica. Como faz Vik Muniz em suas “cópias” de outras obras de arte. Arte sobre arte, com esmero na técnica.

Camadas de arte sobre arte, como em texto sobre texto. Como na tradução da literatura, cuja melhor definição talvez seja justamente esta: texto sobre texto, com arte. Não basta copiar — sequer é possível, na prática; é preciso repensar o texto e plasmá-lo, à maneira do tradutor, no molde da outra língua.

Na arte de Muniz, o modelo se torna a moldura a ser preenchida — o miolo a ser burilado, trabalhado — no material e na técnica — para que se alcancem novos efeitos. O modelo como moldura; o original como rascunho. Mais que isso: o original como repositório de suas tantas traduções. Ali descansam muitas traduções possíveis, que só o leitor pode ativar, que só o tradutor pode fazer cristalizar.

Na tradução, a persistência e a eternidade do original — ou, pelo menos, de algumas de suas interpretações possíveis. Por isso, surge, para o escritor, a tradução como chancela de qualidade. Ter sua obra traduzida é não apenas deliciosa massagem no ego — o prazer presente —, mas a perspectiva da posteridade.

Traduzir nem sempre é visto como algo prestigioso, bem sabemos. Mas ser traduzido é coisa bem distinta. E o prestígio que se adere a esse fato — ser traduzido — é inquestionável. Não é à toa que em orelhas tantas vezes se lê menção às várias traduções de uma obra — justamente como chancela da qualidade. No Brasil, mais que o selo de qualidade, busca-se a aprovação do estrangeiro. Por vários motivos, inclusive pecuniários. Mas, talvez, principalmente pela possibilidade de ser visto pelo outro — não somente pelo que isso significa em termos de projeção do nome do autor e de sua obra, mas pelo natural desejo de ser lido — e reconhecido — em culturas de maior prestígio (capazes, portanto, de gravar carimbo de ampla aceitação).

A tradução como glória, como “validação do texto por uma editora estrangeira”. A tradução como projeção da obra além-fronteiras, especialmente além-fronteiras lingüísticas e culturais. Superar as amarras impostas pela língua portuguesa — sempre é bom lembrar o dito por Leminski, que já reproduzi aqui: a derradeira sacanagem… —, romper o círculo vicioso formado por pouca cultura, pouca leitura, poucos leitores.

Não sei se nesse raciocínio — a tradução como chancela — há lugar para pensá-la como obra de arte. Pode ser que o ofício — como quase sempre — seja visto apenas como meio para projetar o texto (sem maiores considerações sobre a qualidade mesma da tradução, ou sobre a tradução como outra obra de arte). Tradução, meramente, como cópia do original.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho