Tradução é texto que se constrói em oposição a outro. A literatura traduzida é uma literatura formada não do decalque, mas do atrito. O texto não desliza de uma língua para outra; o texto traduzido se erige contra o original, muitas vezes de forma violenta, com certo despeito, com certa rebeldia. Se fosse possível fazer um verdadeiro decalque, uma translação tranqüila do texto de um código a outro, o problema crucial da tradução estaria resolvido. Poder-se-ia pensar, quem sabe, numa verdadeira e eficiente tradução automática. A realidade, como se sabe, é bem diferente.
Construir um texto envolve sempre, em maior ou menor medida, certa dose de dor. Fazer um texto “do nada”, fabricar um original, implica extrair (não sem sofrimento) informação da memória e de outras fontes diversas. Será uma mescla de inspiração (considerada como pensamento intuitivo), pensamento racional e pesquisa (fontes externas à mente).
Ao construir um texto “não original”, o tradutor agrega à equação o elemento adicional de um texto de referência (ou, mais que isso, de um texto que se pretende decalcar). Contudo, o texto-base não funciona como matriz verdadeira. Serve de ponto de partida e de fio condutor, mas não funciona como matriz confiável. Pobre do tradutor que se aventura no vôo cego da decalcagem. A cópia sairá com tantas imperfeições que a tradução não passará de mero simulacro do original. Tradução como sombra.
O texto precisa ser construído. A tradução precisa ser construída, não como decalque, mas em oposição ao original. A tradução só prevalece, só se torna duradoura, e mesmo referência de uma geração, se se erige em oposição ao texto que lhe deu origem. A tradução decalcada, subserviente, escorre fácil para o esquecimento. Não impressiona, não perdura. A tradução, por seu caráter secundário, só se afirma como transgressão, como algo que se constrói em oposição a outra coisa. A tradução que se dilui e se amalgama ao original não se constitui em texto autônomo. É como só pudesse ser lido em paralelo ao original, quando justamente o que se quer é substituir o original por algo que possa ser lido independentemente.
O texto traduzido tem que agregar valor. É reduzido o valor do texto que se traduz por mero fim de reprodução. Tem sentido como objeto de consumo, mas não como objeto artístico (e estamos falando especificamente de tradução da ficção).
O tradutor, como qualquer ser humano, também quer deixar sua marca. Como o autor. Quer ajudar, com suas transformações textuais, a escrever a história da literatura. Mas marca se constrói com tribulação e invenção, não com decalque. O tradutor “sofre” o processo de translação do texto, que cortante atravessa sua mente e sua carne antes de se alojar na página em branco. Precisa mostrar em que o texto traduzido difere do original, não em que se assemelha. A semelhança é o essencial, o necessário, mas não o conjunto do trabalho. A semelhança se complementa pela oposição, que se produz justamente por aquilo que torna a tradução literal impossível: obstáculos incontornáveis provocados por fatores diversos, como estrutura sintática, peculiaridades lexicais, elementos culturais ou materiais particulares.
O texto construído em oposição ao original contribui para o crescimento desse próprio original. Alarga o alcance do texto primeiro, mas também aprofunda seu conteúdo. Adiciona à tradução o elemento da originalidade. É um jogo arriscado, não há dúvida, pois a tradução não é habitualmente julgada por sua originalidade, mas por seu nível de “decalcagem”. Será certa e forte a oposição.