Tradução: memória e futuro

A tradução funciona, por assim dizer, como espécie de solidificação da memória
01/02/2007

A tradução funciona, por assim dizer, como espécie de solidificação da memória. Uma forma de congelar, num momento dado, a forma de um texto qualquer em outra língua. Ou na mesma língua, atualizada. É pela tradução, intra ou interlíngua, que os grandes clássicos do passado chegam até nós. É pela tradução que podemos ler os gregos e romanos, mas é também pela tradução que muitos americanos podem hoje ler (e entender) Shakespeare.

A memória nos prega peças, não raro. O mesmo autor, ao reler sua obra de anos passados, pode não reconhecer o texto totalmente como seu. Ou pode, até, sequer se reconhecer no antigo papel. Os estranhos caminhos desse meio fluido e tortuoso que chamamos texto exigem guias. Bons críticos, bons leitores, bons tradutores.

O que lembro, tenho, diria Riobaldo. O que se esquece, coletivamente, está quase irremediavelmente perdido. Salvo por algum achado arqueológico, ou por meio da reinvenção (que, porém, muito possivelmente será dada como coisa nova, não como recuperação). Muito do que a humanidade já escreveu caiu no mais irreparável dos esquecimentos. Boa parte só escapou do triste fim pelas vias da tradução.

Em termos de texto, a humanidade só tem o que traduziu. Um texto qualquer de uma civilização perdida, cuja língua nos é desconhecida, não nos diria muita coisa. Nos faltaria uma pedra de Roseta. Nos faltaria um guia competente.

Não fossem os árabes e gente como Averróis, boa parte do conhecimento aristotélico estaria perdida. Talvez para sempre. A tradução sempre tem algo de indireto, e não só quando se fala de tradução da tradução (por exemplo, de tradução do chinês para o português via língua inglesa). É uma obliqüidade quase inescapável, que adiciona ares arcanos ao ofício da tradução.

A computação é hoje a esperança de solução para o crônico problema de falta de memória da humanidade. Esperança de não perder mais tantos originais, de não jogar no esquecimento obras que simplesmente não deveriam desaparecer, por sua importância — científica, histórica ou artística.

Capacidade de armazenamento e velocidade de processamento são instrumentos vitais para a preservação da memória. É algo promissor a perspectiva de poder preservar um texto — mesmo o lixo atual — por muito mais tempo. Originais e traduções tenderão a viver mais. Talvez até mesmo as línguas — e conseqüentemente os textos nelas produzidos — ganhem maior estabilidade, maior longevidade.

No campo da tradução automática, um conceito importante é o de memória de tradução. Trata-se do armazenamento de textos originais e suas traduções, respectivamente divididos em unidades “administráveis”. A idéia subjacente é aumentar a velocidade e a qualidade das traduções mecânicas. Mas as conseqüências para a memória (coletiva da humanidade) podem também ser importantes, pela preservação de textos que podem desaparecer de outros suportes, como o papel. Há coisas que a humanidade não pode se dar ao luxo de perder.

Traduzir não deixa de ser, de certo modo, preencher os vazios, as lacunas, da memória. No plano individual, a eterna luta do tradutor contra as falhas da documentação disponível e de sua própria memória. No plano coletivo, a luta de um texto para sobreviver, mesmo como memória, às revoluções sociais e tecnológicas.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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