Tradução mal traduzida

O texto torto que desorienta mesmo quem nunca sequer sonhou com o original
30/12/2017

“Não vê que as palavras ficam deturpadas em esperanto como em tradução mal traduzida?” O texto não é sobre tradução, mas sobre Brasília. Clarice fala do caráter particular da então nova capital: sua estranheza diante do Rio. E então lhe pede que “não entre numa de falar esperanto”.

Em esperanto as palavras são deturpadas, retiradas de seu ambiente natural e reconstruídas, com critérios determinados, em outro cenário, artificial. Como Brasília se construiu como cenário artificial para abrigar a capital da modernidade.

Não sei se não há aqui injustiça contra o esperanto. Não sei se todas as palavras ficam deturpadas nessa língua. Não a conheço. Mas podemos aceitar, sem maior resistência, que as palavras ficam deturpadas, sim, em tradução mal traduzida. Palavras retiradas de seu contexto original, distorcidas, jogadas em cenário exótico. Deturpam-se naturalmente. Veem-se mal, deslocadas. Seus sentidos se desorientam. Desorientam o leitor.

Tradução mal traduzida é bem assim. O texto torto que desorienta mesmo quem nunca sequer sonhou com o original. Tá na cara que é tradução, e das piores. A redação rígida, que aprisiona o pensamento. A escritura estranha que mata os motores dos sentidos. Literatura que deixa de sugerir e de disparar devaneios.

Clarice certamente sabe o que é tradução bem traduzida. Traduziu ela mesma dezenas de livros para o português. Conhece o ofício. Deduzo, apenas deduzo, porque não sei se li ou não uma de suas traduções, que deveria traduzir bem. Por quê? Porque escrevia bem e com originalidade. Sim, mas escrever bem, embora condição necessária, não é condição suficiente para traduzir bem. Mas Clarice é Clarice. Trata-se de um axioma.

Sabendo o que é tradução bem traduzida, sabia também o que é tradução mal traduzida. Algo assim como um texto com palavras deturpadas. Nem digo, agora, em esperanto. A língua figurava ali, suponho, mais para fazer o vínculo com Brasília, por sua artificialidade, do que propriamente por suas qualidades intrínsecas — positivas ou negativas.

Clarice também conhecia bem as asperezas e os obstáculos que se colocam diante do tradutor. As dificuldades de alcançar a expressão, no texto traduzido, daquilo que parece tão pleno, tão íntegro e tão belo no original.

Num texto de 1970 intitulado Traduction tardive (tenho apenas uma tradução em francês da coletânea de crônicas A descoberta do mundo, na qual se inclui essa breve escritura), Clarice recorda, com certo remorso, que deixara de traduzir a epígrafe que inscrevera no romance A paixão segundo G. H.. Trata-se de uma frase de Bernard Berenson. No original de Traduction tardive, Clarice a traduz enfim ao português, seis anos depois da publicação do livro.

Mas a tradução não lhe agrada totalmente. Termina a curta crônica com a expressão da decepção, de uma decepção que atinge, em maior ou menor grau, todo tradutor e todo leitor de tradução: “En anglais cette phrase est plus achevée, et également plus belle”. A frase original? Mostro apenas a tradução, aquela que não lhe agradara totalmente, que lhe deixara uma sombra de dúvida. Não poderia haver tradução melhor? Não que fosse tradução mal traduzida. Longe disso. Com Clarice não se brinca.

Mas voltemos ao texto e registremos apenas a tradução, que, afinal, é o que nos toca mais de perto. Não a tradução de Clarice, mas a de Jacques e Teresa Thiériot: “Une vie complète est peut-être celle qui se termine par une identification si totale avec le non-moi qu’il ne reste aucun moi pour mourir”.

A tradução perfeita talvez seja assim, talvez seja um dia assim. Com desbragada licença poética, eu diria que a tradução perfeita seria aquela que se identifica plenamente com a negação do Verbo. Que dela não se possa dizer mais nada, a não ser que é simplesmente original.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho