Carne e espírito travam embate no branco da página, da tela, da mente do tradutor. Espírito e carne. Transportar-se ele mesmo, tradutor, para dentro de seu trabalho. Traduzir-se em texto e deixar, ali nas entrelinhas, fiapos de suas fibras, restos de nervos, destroços de neurônios já gastos de tanta fricção nas sinapses.
Entregar-se, corpo e alma, carne e espírito, à tarefa. Tarefa do tradutor, coisa quase intragável essa. Depois da entrega, o cansaço e o esquecimento. Seu nome longe da capa — escrito em corpo menor na folha de rosto.
Nada disso o impede de investir ali, no branco da página, carne e espírito. Reescrever o texto de outro, para glória de outro. Ocultar-se, esconder-se, aceitar o olvido com resignação. Não é pedir demais?
Investir, se preciso, contra a tradição. Cortar não só a sua carne — carne dele, tradutor — mas também rasgar os tecidos do original. Ir buscar na massa sangrenta, ali embaixo da tinta preta no papel já nem branco, amarelado, a matéria com que construir seu novo frankenstein. Não belo, talvez, mas que traga em si a angústia da perda e a euforia do renascimento. Algo que possa impressionar e surpreender tanto o leitor como aquele texto que o precedeu. Se mereceu a tradução, algo tem que ter de bom.
Tantas palavras tontas a questionar seus sentidos. Perfurar a carne para infundir-lhe espírito. Espírito que vivifica carne pútrida. Purifica. Traz de novo à vida. Texto que jazia esquecido. Ou, no outro extremo do espectro, texto tão esperado. Com ansiedade de quem espera um filho chegar.
Tratar o texto com espírito franco, peito aberto, pronto não apenas a contornar obstáculos mas, acima de tudo, construir túneis. Que firam e abram novos canais que conduzam da carne o sangue, de volta às veias o líquido sagrado motor da inspiração e motivo de fascínio para todo leitor.
Como mesmerizar o leitor como o teria feito o original, se pudesse ser pelo leitor lido? Às vezes nem possível é mais. Perdido para sempre, nem traços, nem trechos — não há como remontá-lo a partir do nada. Mas mesmo se fosse, nada mais instigante que lhe dar nova significação pela tradução. Envolver o espírito gasoso e informe com a carne que lhe confere esteio e estrutura. Carne da palavra, espírito do sentido. O firme e o fluido convergindo num texto novo. Novo nome da tradução.
É o que lhe interessa. Ao leitor, ler o texto novo, como se lesse de novo o original. Aquela mesma sensação, misto de ansiedade por lê-lo logo e desejo de prolongar o êxtase — ler aos poucos, sorvendo devagar cada página, como o faz o tradutor. Demorar no espaço entre as frases. Respirar, refletir. Ver de todos os ângulos, imaginar todos os sentidos que se abrem. Seguir toda sugestão. Grande prazer da literatura, enfim.
Prazeres da carne, prazeres do espírito. Mistura do concupiscente e do místico. Nas mãos ilusionistas do tradutor — todo-poderoso por alguns instantes — o destino do original em seu novo meio. Mediando, a tradução, entre a carne e o espírito, em busca da justa medida.
Fazer carne e espírito conviverem — não em paz, mas sob tensão — no mesmo corpo do texto. Não optar simplesmente por apenas um ou apenas outro. Não seriam excludentes? A literatura pode comportá-los, ambos, adestrá-los com verniz de educação — tudo sempre pronto para explodir. Nacos de carne dilacerada e sangue espirrando, o espírito apavorado.
O leitor deleitado, surpreso pelo inesperado que o espanta e maravilha — arranca-lhe um sorriso, enquanto fecha o livro para saborear melhor o momento. O incrível que o faz acreditar na persistência da literatura. Mero entretenimento e grande arte. Mediada pela tradução, sobreviverá.