Tradução em Cruz e Sousa

Um dos principais nomes da poesia simbolista no Brasil, o escritor catarinense deixou lampejos inspiradores também na tradução
O poeta Cruz e Sousa
04/05/2021

Cruz e Sousa desceu às profundezas da alma humana e, lá, lançou luz sobre mecanismos psicológicos e poético-literários que apontam o Símbolo, o Absoluto, o inexprimível. Para a tradução, deixou-nos alguns lampejos inspiradores, que podemos explorar aqui.

O simbolismo, ao qual se associou o poeta catarinense, encerra em si a busca de uma tradução das mais impossíveis, mas talvez das mais potencialmente poéticas: a expressão da Essência. Essência que não teria necessariamente vinculação com as palavras, estando além de todo esforço descritivo.

Diz-nos o próprio poeta: “Ó Sons intraduzíveis, Formas, Cores!…/ Ah! que eu não possa eternizar as dores/ Nos bronzes e nos mármores eternos”.

Essa busca em Cruz e Sousa foi sintetizada por Roger Bastide da seguinte forma: “Destruição das formas (no plural) nas cerrações da noite, cristalização da Forma (no singular) ou solidificação do espiritual numa geometria do translúcido, tais são, afinal, os dois grandes processos, antitéticos e complementares ao mesmo tempo, que permitiram a Cruz e Sousa trazer aos homens a mensagem da sua experiência e apresentá-la em poesia de beleza única, pois que é acariciada pela asa da noite e, todavia, lampeja com todas as cintilações do diamante”.

Há um paralelo nesse processo de Cruz e Sousa, segundo Bastide, e a transformação experimentada pelo texto do original à tradução. As cerrações da noite descem naturalmente sobre o texto, todo texto, com o passar do tempo, apagando as formas e os sentidos; a (nova) solidificação (do original) numa geometria do translúcido corresponde à criação da escritura traduzida, que, se legítima, preserva necessariamente certa translucidez em relação à obra primeira.

O tempo vai lentamente dissolvendo no texto os significados com seu hálito ácido. Resta na superfície a escritura bruxuleante, sentidos quase extintos. Para o poeta da angústia, “Embora o esquecimento vão dissolva/ Tudo, sempre, no mundo,/ Verso! que ao menos o meu ser se envolva/ No teu amor profundo!”.

Os sentidos que impregnam as palavras, o texto, deixando-se absorver como água pela areia, caminham para um lento esquecimento, deixando atrás de si a secura de uma superfície enigmática. Verifica-se, na prática, certo ensaio de clarificação, por vezes, ou aplainamento, por outras, que o esquecimento induz. Na tradução, então, há que colher só o precipitado do original, para conceber uma nova escritura.

O poeta capta o sentimento e trabalha para inscrevê-lo em verso, num esforço que envolve não apenas sensibilidade e, quem sabe, o auxílio da Musa, mas também o esforço do artesão da palavra: “Porque não é por sentimento vago,/ Nem por simples e vã literatura,/ Nem por caprichos de um estilo mago/ Que sinto tanto a tua essência pura”.

Na tradução, o novo autor substitui significados do original pelos seus próprios sentimentos, insuflando ali sempre um pouco ou muito de si.

O poeta também captura os sentidos do silêncio, a eloquência das pausas, ausências e lacunas, que se transformam em versos e rimas: “Largos Silêncios interpretativos,/ Adoçados por funda nostalgia,/ Balada de consolo e simpatia/ Que os sentimentos meus torna cativos”.

Ao tradutor, por seu turno, cabe interpretar todos os estalidos rascantes e esse fundo sonoro difuso e atordoante de que é feito o silêncio.

O tradutor, como o poeta, não busca apenas a Essência, mas o vislumbre do visionário.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho