Tradução e tentação

Barbara Heliodora foi uma das grandes tradutoras de Shakespeare para o português
10/11/2016

Barbara Heliodora foi uma das grandes tradutoras de William Shakespeare para o português brasileiro. Traduziu numerosas peças do bardo inglês, inclusive uma das mais significativas, Macbeth. Não vou tratar aqui nem da peça nem da qualidade de sua tradução. Esta já foi objeto de pelo menos uma crítica propriamente dita. Na realidade, de uma análise bermaniana feita por Wanessa Gonçalves Silva. Deixemos a crítica aos críticos.

Vamos ao que nos diz Heliodora sobre sua tradução. Diz-nos poucas palavras. A introdução da tradutora trata apenas da obra de Shakespeare, não de sua versão ao português. Tampouco encontramos, nos rodapés, notas que nos indiquem posições da tradutora diante do texto. Achamos uma única exceção, em que Heliodora nos explica o uso da forma verbal “equivocando” em contexto que provoca imediato estranhamento.

Logo após a introdução, lemos uma breve nota à segunda edição. Nota da tradutora. Um curto parágrafo, nada mais do que seis linhas. Heliodora nos conta que o texto foi todo revisto, “corrigidos vários erros e omissões”. Admirável, por si só, esse trabalho de revisão da própria tradução. Não se peja de nos contar que encontrou vários problemas no texto. Pequenos, ao que parece. E todos eles corrigidos, para sorte dos leitores.

Mas não só isso. Também nos relata, em terceira pessoa, ter sofrido e sucumbido à tentação. Tentação de, na releitura, substituir palavras. E se fossem apenas palavras… Mais. Versos inteiros. Substituídos por expressões que então lhe pareceram mais fiéis. A fidelidade sempre cobra observância, em tradução, ainda mais de uma crítica rigorosa como Barbara Heliodora.

Não foi apenas à fidelidade, contudo, que a tradutora rendeu tributo em sua revisão. A tentação da beleza — sempre a beleza — também a carregou. Assim, a substituição foi feita em casos nos quais as novas expressões lhe soavam “mais atraentes ao ouvido”.

Pena que Heliodora não nos aponte quais foram os erros, quais as omissões, quais as substituições. Haveria ali farto material para o trabalho de um curioso por traduções, ou mesmo para críticos e estudiosos do assunto. É claro que, quem quiser, poderá descobrir tudo isso fazendo o cotejamento entre a primeira e a segunda edições — acrescentando à mesa, como não poderia deixar de ser, o próprio original.

De qualquer modo, esse sucinto parágrafo já é suficientemente rico. Aponta para a natural insatisfação de quem relê seu texto ou sua tradução. A releitura inevitavelmente significará um olhar diferente para um texto diferente. O tradutor já não é o mesmo, transformado pelo tempo; pelas novas leituras, experiências; e pelos novos textos. Nem o próprio original é o mesmo, afetado pelo desgaste natural dos sentidos e pela obsolescência das interpretações.

O novo olhar de Heliodora foi rigoroso, sem dúvida. Parece haver alterado substancialmente o texto, pelo menos em alguns trechos (“versos inteiros”). O capricho em buscar uma redação mais bela é sempre louvável, como tributo à qualidade da obra literária.

Também buscou um texto mais adequado. Podemos apenas fazer algumas suposições sobre o que terá significado “expressões mais adequadas” para a tradutora. Talvez se refira à adequação do trecho ao seu entorno, ou ao tom geral do texto. Quem sabe aluda à adequação das expressões aos sentidos que supunha provirem diretamente da matriz. Provavelmente não saberemos jamais.

Fica apenas o testemunho de um esforço adicional. Traduzir uma só vez já é trabalho bastante. Quanto mais não será rever e corrigir a tradução, buscando torná-la mais atraente ao ouvido da tradutora e — por que não dizer? — aos olhos do leitor.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho