Tradução e tensão entre forma e significado

Essa mescla de forma e substância de que é feita a literatura torna a tradução questão mais intuitiva que técnica
01/07/2013

Essa mescla de forma e substância de que é feita a literatura torna a tradução questão mais intuitiva que técnica, mais de ensaio e erro que de teoria (aplicável ou não). Não se nega, no texto, a supremacia da substância, como núcleo da mensagem. Não se nega a ancilaridade da forma, como veículo. Mas na literatura a atribuição de hierarquias entre esses dois elementos pode levar, na tradução, à composição de textos claramente desequilibrados e francamente antiestéticos — ou mesmo antiliterários.

Na literatura — como em sua tradução — a dissociação entre forma e substância é por demais complexa e até arriscada. Impossível, talvez. Na prática, é difícil até mesmo identificar bem o que é uma coisa, o que é outra. Entra na questão a definição da intencionalidade — ou possíveis intencionalidades — do autor: outra área de complexidades quase intransponíveis.

Não precisamos falar de poesia, onde a mescla atinge paroxismos. Nem de prosas poéticas, prosas experimentais. A prosa pura e simples. Pura literatura em prosa, convencional. Ali se acha a mistura entre supostos imiscíveis. Ali a caracterização de forma e substância assume ares de teorização sobre a própria natureza da literatura.

A arte de iludir, de criar jogos, suspenses, diferimentos — sugerir menos que dizer. E muitas vezes sugerir a conclusão errada, para alcançar o efeito da resolução surpreendente. Todas as artimanhas parecem válidas na literatura, artimanhas para confundir forma e substância e tornar a tradução tormento de proporções consideráveis. Ofício e arte, sempre, mas com reconhecimento de mimeografia.

A forma pode gerar substância — como mais comumente se vê na poesia — também na prosa. A repetição da forma — a constituição de reiterações identificáveis, que compõem padrões ao longo do texto — pode sugerir não apenas a gradação e a consistência da substância, mas sua própria criação.

O estilo pessoal do escritor — e, por que não?, do tradutor — também produz substância, no sentido de efeito literário que se quer transmitir, como mensagem, ao leitor. Trata-se também de aspecto formal, claro, mas que tende igualmente a engendrar substância. Coisas pouco perceptíveis sem análise criteriosa, mas que certamente afetam a maneira como o leitor percebe e acolhe o texto — e como ele o avalia.

Traduzir é entrar no jogo do texto, não com a intenção analítica de separar imiscíveis para remontá-los adiante, mas de reprogramar inventivamente a relação entre forma e substância. Não que não se requeira análise na tradução — pelo contrário, analisar é preciso, mas a partir de ótica que conduza à apreensão e à recriação do texto como mescla.

A percepção do texto como conjunto cambiante — fácil talvez de retratar, mas difícil de apreender em seu aspecto dinâmico — torna crucial a relação entre forma e substância. Crucial para a definição e a análise da literatura, fatal para a tradução. Toda tradução já nasce morta, ou então como alvo fácil para a crítica fácil. Mero retrato que não soube entender a cinética do texto e suas miríades de encruzilhadas e possibilidades.

Engano dos sentidos, engano dos leitores, engano também dos tradutores. A literatura só funciona se vale a prestidigitação, a qual não se deve revelar sob pena de minguar o encanto. Razão do fascínio, da sensação de enlevo, da vontade que une o leitor ao texto e provoca o desejo de ler sem parar.

Ao tradutor cabe manter no texto o feitiço, mesmo que tenha que testar mesclas diferentes de forma e substância. De formas e substâncias, brincando com diferentes palavras e significados. Ensaio e erro.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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