Freud e psicanálise são (serão, seriam?) tema de exposição em São Paulo. Freud e psicanálise embalaram e empolgaram muitos intelectuais, inseminaram muita arte e ciência por aí. De minha parte, não queria me atrever a falar de psicanálise. Pouco, quase nada conheço. É assunto sinuoso, elusivo, arredio. Mas que fazer? Se Freud está entre os maiores teóricos da tradução…
Não sou eu que digo. Se falo por mim mesmo, que valor tem? É aquela história: quem fala do que não sabe… Minha voz não tem peso. Mas é gente de voz quem diz. O psicanalista Patrick Mahony, por exemplo. Ou Rosemary Arrojo, teórica da tradução. Ou Andrew Benjamin, acadêmico e também estudioso da tradução.
É Mahony quem diz que Freud merece figurar “entre os mais importantes teóricos da tradução”. Por quê? Porque o conceito de tradução em Freud era central ao seu próprio trabalho. O analista é um tradutor. Tradutor do que é inconsciente para o que é consciente. A operação que se dá é tradução, interpretação, transformação. É descartar repressões e preencher os vazios da memória.
É também transgredir, como repara Andrew Banjamin. O tradutor é instigado a cometer crimes contra o seu autor. Isso é Freud. O tradutor arrancado de sua pacata posição cordata, lançado à transgressão. Diante do original, transgride. Se é impossível reproduzir, transforma, transgride. O analista diante do que tem de interpretar? Transgride. O que se lhe apresenta já é interpretação. “Uma apresentação que é desde o início uma tradução” (Benjamin).
Arrojo, que escreveu um livro intitulado Tradução, Desconstrução e Psicanálise, pinça de John Forrester (e eu dela pinço, nessa teia infinita de citações) que “o ato da tradução tem como meta específica a repressão do original e a substituição deste por uma réplica exata.” Quer maior transgressão que essa? A tão criticada clonagem? Quem conhece Borges, se lembraria de Menard.
Voltando à vaca-fria, John Forrester é tradutor de Lacan, que se julgava exímio intérprete de Freud, que se propôs interpretar o inconsciente. Forrester, o tradutor, foi traduzido por Arrojo. E afinal, antes de alcançar o leitor, foi citado por mim, talvez sem querer sê-lo. Isso também faz parte da transgressão.
E o tradutor/transgressor (traidor?) pode, por que não?, ser analisado. Pois (e isto é Arrojo) a interpretação que ele faz do texto do outro sempre vai trazer algo que precisa ser analisado naquilo que ele atribui a esse texto. O tradutor cai nas mãos do analista, que não é senão outro tradut/transgress/or.
Compromete-se a clareza, claro. O transgressor é como quem turva a água, toldando a transparência. É agente da transgressão necessária que leva o leitor a tomar contato com o texto. Que não é uma réplica, claro. O mais cordato transgressor (que o é sem saber que é) o quereria réplica. Mas não é. O texto debaixo d’água, as letras moldadas em areia. Ao menor agito, tudo turva-se. Depois é preencher os claros da memória.
Mas a análise é interminável, como diria Mahony, apesar do compromisso de comunicar. “E a clareza absoluta é uma perigosa ilusão.”