Tradução e preconceito

A tradução é uma longa corrente de distorções, que se revela não só no texto traduzido, mas também no original
29/10/2018

A história da tradução é uma crônica de preconceitos fundamente arraigados. O primeiro e principal é a própria prevenção contra a tradução, que é vista como texto menor frente a outro que lhe é anterior e superior, o original.

A superioridade é tida como axiomática: o original será sempre melhor, pois foi produzido com todo o gênio do autor, movido pelo calor da inspiração. Trata-se de trabalho mais visceral, mais perto do Verbo, mais junto da Luz. A tradução é, na melhor das hipóteses, trabalho intelectual que se baseia não na inspiração, mas no esforço cerebral, na pesquisa, no domínio da linguagem e dos idiomas. Na pior das hipóteses, ofício braçal que, se bem feito, meramente reproduz o texto primeiro — como se pouco fosse…

A anterioridade é ainda mais clara: a tradução não pode anteceder o original, obviamente. A não ser que mergulhemos em delírios ficcionais em que, na infinita sequência de textos, desde tempos imemoriais, prévios à escrita, possamos supor — supor apenas — que o original é, na verdade, cópia de sua própria tradução.

Mas deixemos de lado essa ficção quase borgiana. Voltemos um pouco no tempo. Ao ano de 1865, quando os preconceitos — linguísticos e sociais — eram mais abertamente propalados. Uma carta de José de Alencar para o doutor Jaguaribe, seu amigo. Uma ideia de tradução. Não a tradução puramente textual, mas algo mais intercultural que interlinguístico, embora também linguístico. Selecionei o seguinte trecho, que transcrevo literalmente: “Sem dúvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua as ideias, embora rudes e grosseiras, dos índios; mas nessa tradução está a grande dificuldade; é preciso que a língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva da língua bárbara; e não represente as imagens e pensamentos indígenas senão por termos e frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem”.

Alencar foi um dos grandes escritores indigenistas brasileiros. Ajudou a resgatar a imagem do indígena, a divulgar seu modelo como ideal de pureza do bom selvagem. Mas não deixava de expressar todo o seu preconceito — que era talvez menor que o preconceito comum de sua época — contra o índio, sua cultura, suas ideias e sua língua.

O trecho de Alencar é eivado de preconceitos, sem dúvida. Mas traz em si, por outro lado, um conceito de tradução que supõe, ao mesmo tempo, um processo de adaptação (do português à “língua bárbara”) e outro de redução (do pensamento do índio a termos que dele se esperam).

O processo de adaptação não deixa de ser um ato de coragem, ao procurar aproximar o português do tupi; e, por esse intermédio, o leitor brasileiro do indígena. Uma forma de traduzir o mundo indígena para o leitor médio brasileiro da época. Não se pode deixar de considerar que essa estratégia alcançou êxito, ainda que relativo.

Já o processo de redução, intimamente associado ao de adaptação, parece decorrer do próprio preconceito contra o índio. O poeta deveria se ater à imagem que o leitor fazia do selvagem — imagem essa irremediavelmente calcada em prejulgamentos equivocados, quando não disparatados. Trata-se de uma concessão ao leitor, que implicava necessariamente distorção de uma imagem mais realista do indígena e, quem sabe, da própria imagem que o autor dele tinha.

A tradução é uma longa corrente de distorções, que se revela não só no texto traduzido, mas também — e talvez principalmente — no original.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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