Tradução e impossibilidade de repetição

A repetibilidade é a maior marca daquilo que é mecânico ou controlável
01/09/2007

A repetibilidade é a maior marca daquilo que é mecânico ou controlável. Fenômenos controláveis, cujos parâmetros podem ser medidos, são, supõe-se, também iteráveis. O irrepetível é o incontrolável, o que escapa a nossa capacidade de sistematização e compartimentação.

Um texto literário não é repetível. Ou seja, se o próprio autor quiser repeti-lo (sem acesso a “cola”), certamente não conseguirá produzir um texto igual. Parecido, sim. Mas certamente com muitas diferenças — de vocabulário, de construções e mesmo de situações dramáticas. A memória nos prega peças.

A tradução tampouco é repetível. Dê o mesmo original a dois tradutores, e obterá resultados diferentes. Dê o mesmo original ao mesmo tradutor que já o tenha traduzido. Os dois resultados não serão iguais. Talvez sejam mais semelhantes entre si as duas traduções do mesmo tradutor que os dois originais do mesmo autor. Mas certamente haverá muitas diferenças entre as duas versões.

A impossibilidade da repetição é a marca não somente do texto literário, mas também desse seu ramo pobre, a tradução. É impossível deter a multiplicação de alternativas que se abrem na mente do autor ou do tradutor. Se a capacidade de repetição é a base mesma da formação de identidades, é patente a carência de identidade do texto traduzido. Ou mesmo do original. Dito de outra forma, a cada leitura forma-se uma identidade literária diferente.

Traduções não valem originais, diria o narrador de Esaú e Jacó. A ilusão de repetição que existe no processo tradutório é responsável por boa parte da desvalorização desse ramo da literatura. A tradução não vale uma repetição, mas dessa se aproxima — se não pelo resultado, ao menos pelo processo.

Se não vale o original, a tradução, quando mais não seja, é o método que se usa para perpetuar aquela pequena porção de textos literários dignos de ser lidos pelos séculos dos séculos. Novamente a ilusão de continuidade que nos fornece o simulacro de repetição: o original que atravessa gerações pelas mãos dos tradutores é, na verdade, irrepetível. Não se lê, portanto, o original, mas outra coisa criada a partir daquele.

A tradução não trabalha com conceitos abstratos. Trabalha somente com palavras. Na conceituação do tradutólogo Edwin Gentzler, o visível na tradução é a linguagem se referindo não às coisas, mas à própria linguagem. Entra-se numa cadeia de significação cujo início não pode ser identificado. Muito menos repetido. O texto traduzido torna-se tradução de outra tradução anterior, num sistema de regressão infinita. Uma espécie de jogo de espelhos distorcedores, que miram a reprodução sem poder atingi-la.

A tradução está para o original assim como o texto está para a fala. Esta lhe é superior, assim como o original é superior à tradução. O texto padece do defeito de jamais conseguir igualar a fala, por mais abundantes sejam os diacríticos e sinais de pontuação. Impossível acomodar no universo bidimensional do texto toda a riqueza das ondas sonoras tridimensionais. Sem falar de todo o colorido gestual e facial que a acompanha, às vezes inseparavelmente. A distância não será tão grande entre tradução e original quanto entre texto e fala, mas não deixa de haver abismo intransponível entre aqueles dois.

O problema, talvez, esteja na excessiva proximidade, em certa promiscuidade mesmo que se dá entre original e tradução. A distância se impõe menos no campo do real e mais no campo de valorações subjetivas e dificilmente avaliáveis. Trata-se, de maneira mais evidente, de questão de autoridade. E questão de autoridade não se discute. Traduções não valem originais. E ponto.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho