O título certamente causa estranheza. Tradução e escravidão?! Que tem uma coisa a ver com a outra? Aparentemente, nada. Mas nos bastidores da tradução, nas discussões sobre a tradução, já se usou e ainda se usa a metáfora do cativeiro, da escravidão. O curioso dessa metáfora é que ela já foi usada nas duas direções possíveis — ou seja, a escravização do tradutor, de um lado, e a escravização do original, de outro.
De um lado do ringue, dos séculos IV e V, temos o dálmata Jerônimo — santo, fino polemista, ávido missivista, tradutor da versão latina da Bíblia conhecida como Vulgata. Do outro lado, doze séculos depois, temos o inglês John Dryden — poeta, satirista mordaz, grande crítico literário, apologista anglicano e católico.
Jerônimo, numa das suas muitas cartas, essa a são Pamáquio, lança a tese do “original cativo”. Recomendando a tradução sentido por sentido em detrimento da tradução palavra por palavra, o santo atribui ao tradutor o papel do conquistador que faz o original marchar cativo para a nova língua. A metáfora pode escandalizar os mais conservadores, que vêem na tradução uma espécie mais sofisticada de cópia. Ainda mais vindo de quem vem, de um santo que traduziu a Bíblia.
Mas a idéia não há de desagradar alguns tradutores atarantados diante do que muitas vezes se exige deles — fidelidade e fluidez . . . ao mesmo tempo. Premido entre a demanda da fidelidade ao original (que aparece aqui como o tirano da história) e a busca da fluidez do texto na nova língua, o tradutor talvez receba com alívio a idéia de Jerônimo. Pôr as cadeias no original e arrastá-lo para uma outra língua — a língua do dominador. O original perde o temível vulto despótico com que costuma assombrar o tradutor, e veste pele de cordeiro — como cordeiro se deixa levar cativo.
Será? A briga é boa, a polêmica é interminável. Na verdade, a idéia de Jerônimo não é nem de longe a predominante. Dryden prevalece aqui, rebaixando o tradutor à posição de escravo que semeia em terras alheias. A boa colheita, se vier, vai parar não nas mãos do escravo, mas do proprietário da terra. Ah, mas se a colheita não for boa . . . ai do mau escravo! O avesso dos louros é todo dele.
Não quero com isso dizer que Dryden propunha que o tradutor devesse agir como escravo. Não. Ele mesmo, que tanto traduziu, foi talvez mais senhor que escravo. É uma posição, essa de Dryden, de um profundo respeito pelo original, quase uma veneração. É o respeito de um homem da Idade Média pelos clássicos que ele traduziu — Virgílio, Juvenal, Ovídio e Horácio, entre outros. De qualquer modo, fica a metáfora da escravidão, que até hoje paira sobre o trabalho do tradutor.
Nem precisamos ir muito longe para ver reflexos disso. O tradutor brasileiro Paulo Henriques Britto, um dos mais festejados da atual geração, disse recentemente numa entrevista à Folha de S. Paulo que o “tradutor tem de ser humilde”. Não que humildade seja apanágio de escravos, claro. Uma dose — até boa — de humildade é sempre necessária. Mas fica um ranço de tirania do original sobre o tradutor, o escravo, ranço que se sente de longe.
A discussão, enfim, é acesa e ainda vai dar pano para muita manga. Espero voltar ao assunto, que hoje está entrelaçado a questões como descolonização e pós-colonialismo, luta entre centro e periferia, tensões Norte-Sul, etc. Mas não quero aborrecer o leitor com coisas pesadas. Antes tratemos delas — as belas e as infiéis, que é assunto mais leve. Na próxima coluna.