Será mais fácil criar do que traduzir? A criação é livre, imaginativa e, naturalmente, sofrida. Exige o esforço da invenção. Exige o empenho de evitar a repetição, bem como a lucidez de usar as boas fontes com comedimento, contornando as bordas do plágio.
A tradução, por seu turno, caracteriza-se pelos limites do original. Há que observar balizas específicas para que o texto se possa classificar como tradução legítima, sem derrapar para o terreno da “tradução livre”, ou do uso do original como mera inspiração para a construção de texto novo. A tradução, em suma, precisa prestar contas ao original. Pagar os royalties devidos; e os devidos respeitos.
A criação livre dispensa barreiras e balizas. O autor tem diante de si a total liberdade de visão e engenho, mas necessita suficiente descortino para entabular escritura viridente, atilada, sob pena de cair na mesmice que embota a literatura.
A tradução literária precisa identificar quantos livros cabem dentro de um mesmo texto. Precisa divisar os entroncamentos e seguir bom trecho de cada ramal, verificando sua adequação ao contexto, ao público-alvo e, até mesmo, ao gosto específico ou às exigências do editor.
A escritura autoral de ficção não tem limites claramente identificáveis, a não ser as demarcações ditadas pelo contexto cultural — geralmente incontornáveis, senão pelos gênios mais intrépidos e inovadores.
À tradução compete lidar com textos e significados transfigurados pelo tempo e pela diversidade e intensidade das sucessivas interpretações. Não basta fixar-se na mera miragem do texto duro inscrito no papel, que este não lhe dirá muito, em especial se muito deslocado no tempo e no espaço.
A criação literária possibilita ao autor abrir comodamente o baú de memórias, para usá-las à vontade e sem peias. Possibilita lançar mão de toda a amplitude da visceral energia narrativa do pensamento. Possibilita adotar atitude sobranceira, acima do bem e do mal, sobrepujando inclusive a força centrípeta da realidade que nos sustém e subjuga.
A tradução envolve análise — separação, decomposição, divisão em partes constituintes — e, sucessivamente, síntese, construção, reconstrução — recomposição das partes, rearranjo, nova montagem de elementos formadores.
A escritura literária implica compreender a alma humana de maneira a mais ampla. Exige que a vastidão do pensamento tome conta da pena, mesmo que por momentos fugazes.
A tradução literária demanda mergulho na alma individual do autor do original, com sobrevoos sobre seu tempo, sua época, seu mundo, suas leituras, seus outros textos.
A criação literária permite quase qualquer transgressão, admite diversas transações textuais e aceita o desregramento como princípio. Exige, por outro lado, a transfusão do sangue do autor, que se torna o fluido vital do texto.
Na tradução, a transgressão tem que ser regrada, para que não extrapole seu sentido mais seguro e mais estrito. Há algo no original que não se pode defraudar, sob pena de sua dissolução e, enfim, desaparecimento. A tradução, mais do que tudo, representa a promessa de eternidade para o texto primeiro. Representa esperança de vitória sobre o tempo implacável.
O autor precisa escrever menos que ler, para acumular suficiente estofo a que possa dar vazão no momento devido; o tradutor precisa interpretar menos que ler, para deixar-se embeber do espírito do original e de seu autor. Qual dos dois terá diante de si a tarefa mais difícil?