Tradução do inferno

José Pedro Xavier Pinheiro e sua versão de "A divina comédia"
31/12/2016

 

“Bem vi que das palavras o sentido,/ Que a declarar apenas começava,/ Fora por outros logo confundido.” Eis aí os versos 10 a 12 do Canto IX de A divina comédia, na tradução de José Pedro Xavier Pinheiro.

Dante está no inferno, acompanhado de seu mestre Virgílio. A cena é horrenda e repele os sentidos. O mestre recua. As palavras, nem bem expressas, são como que tragadas de volta. Cobrem-se as primeiras com as que lhes sucedem. Os sentidos também se sucedem e se contrariam. Confundem-se.

Na névoa espessa do inferno, instala-se fácil a confusão. O medo tudo medeia, inclusive o discurso. Palavras têm peso diferente em ar tão carregado. Outra é a energia que carregam.

Os sentidos estavam em tudo. Na visão horrífica, no odor repugnante, no calor escaldante. Nas palavras que cortavam, com sentidos rotos, incompletos, entrecortados. Na reticência, que trazia triste auspício, não esperança. Esta, claro, já deveria ter sido abandonada nos portões de entrada.

O silêncio carregava sentidos acesos de receio. Receio maior, talvez, do que aquele que encerrava a expressão mesma.

Não deve ser fácil captar com clareza toda a extensão dos significados em tal ambiente. O medo aterra. A visão se nubla, a audição se embota.

Dante e Virgílio seguem descendo inferno adentro. Passam depois a paragens melhores. O texto segue carregado, denso, em toda a sua extensão. A compreensão, para ser atenta, é lenta. A tradução, sobretudo, é lenta.

Teotonio Simões, da eBooksBrasil, diz que a tradução de José Pedro Xavier Pinheiro “enobrece a língua portuguesa e, em particular, as letras pátrias”. Não comparei a tradução com o original. Nem teria como fazê-lo, menos pelo tempo que consumiria do que pelo desconhecimento da língua de partida. Mas tendo a concordar com Teotonio Simões.

O texto é nobre. E é sonoro. Foi elaborado no século 19 e publicado, póstuma e parcialmente (inferno apenas), em 1888. Simões nos informa que, nos anos de 1910, houve uma segunda edição (suponho que completa) à qual se acresceu um rimário.

A edição que tenho, de 1956, da Editora Calçadense, não tem o rimário, mas, sim, as ilustrações de Gustave Doré. As gravuras são todo um livro à parte e, especialmente, toda uma tradução peculiar do texto de Dante. Valeria também uma coluna separada, que, creio, jamais escreverei.

Também falta à edição da Calçadense, infelizmente, a introdução do tradutor à publicação de 1888. Segundo o Diccionario bibliographico brazileiro, de Augusto Victorino Alves Sacramento Blake, publicado originalmente em 1883, José Pedro Xavier Pinheiro, em sua introdução, “vazou todos os conhecimentos e mostrou modestamente quanto era seu cérebro educado, quanto era ele erudito”. Além da introdução, o tradutor anotou todos os cantos, fato que denota todo o seu esforço por apresentar ao leitor de seu tempo uma obra completa.

No mesmo verbete sobre Xavier Pinheiro, Blake faz outros rasgados elogios ao tradutor: “Artista como era na verdadeira acepção da palavra, não admitia impurezas de linguagem, e fanático pelo gênio de Dante, não poupou esforços para legar às nossas letras um trabalho digno de admiração”.

Voltemos à versão do artista baiano. O texto é nobre, traduzido com justo zelo. Texto de artista-tradutor, como diria Blake. Texto de ourives, burilando verso a verso, empenhando-se em manter métrica e rima. Obra-prima vertida em obra-prima. Ainda se sente a aragem instigante da inspiração original.

“…Ainda o alenta/ O justo zelo, que traduz no rosto,/ Que brando ardendo, o ânimo aviventa” (Canto VIII, 82-84).

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho