A Bíblia é terreno por excelência da tradução. É ele mesmo composto por uma série de versões, envolvendo línguas (em especial, hebraico, aramaico e grego) e épocas variadas, bem como, sobretudo, o problemático traslado da língua falada à escritura.
As versões das Escrituras ao longo dos séculos renderam inúmeras reflexões sobre o ofício, dos próprios tradutores ou de estudiosos, e contribuíram para a criação do campo de estudos da tradução na academia.
Algumas traduções marcaram época, como a Vulgata latina de São Jerônimo, que serviu de base para edições em línguas europeias modernas, a exemplo das versões alemã de Lutero, portuguesa de João Ferreira de Almeida e inglesa de John Wycliffe. Outra tradução marcante, apenas do Antigo testamento, é a grega Septuaginta, cuja lenda mereceria comentário à parte.
Dispensável apontar as complexidades que envolvem a tradução para línguas modernas de textos antigos, alguns deles resultantes de longa cadeia de transmissão oral. O uso de tradução intermediária — em especial a Vulgata, como mencionado acima, mas também a Septuaginta — é fator complicador que, ao distanciar a tradução do original, insere no texto final elementos adicionais de incerteza. A natureza religiosa e doutrinária da escritura implica cuidados suplementares por parte do tradutor — e, eventualmente, estímulo à inserção de ajustes alheios ao original.
Um dos livros da Bíblia tem referência explícita à tradução: o Eclesiástico. Ali encontramos o prólogo do tradutor para o grego, Ben Sirac, que apresenta ao leitor o livro de seu avô Jesus, escrito originalmente em hebraico.
O tradutor realizou seu trabalho no Egito, por volta do ano 132 a.C., inspirado pelo impulso de instruir os conterrâneos que, como ele, estavam “fora da pátria” (as citações provêm da Bíblia de Jerusalém). Aponta que trabalhou com “cuidado e esforço”, dedicando “muitas vigílias e ciência” a fim de alcançar resultado satisfatório e publicar o livro. Naquele tempo, como ainda hoje, se exige do tradutor exatamente isso: pesquisa, meticulosidade, persistência.
Em diálogo direto com seus leitores, o tradutor os convida a ler o texto com “benevolência e atenção” e, mais, a ser “indulgentes onde, a despeito do esforço de interpretação, parecermos enfraquecer algumas das expressões”. O pedido, escrito no século 2 a.C., é sintomático da necessidade que sente o tradutor — não só Ben Sirac, mas os tradutores em geral — de alertar os leitores para as naturais lacunas encontráveis em toda interpretação e, também, para a impossibilidade de preservar, na versão, a intensidade e o caráter da linguagem original.
O tradutor é mais explícito na sentença seguinte, explicando melhor suas aflições: “é que não tem a mesma força, quando se traduz para uma outra língua, aquilo que é dito originariamente em hebraico; não só este livro, mas a própria Lei, os Profetas e o resto dos livros têm grande diferença nos originais”.
Embora ele singularize o hebraico — e aqui não se trata apenas da língua nacional, mas da matriz religiosa —, não podemos deixar de estender a asserção aos demais idiomas: a força na tradução não é igual, ainda que o tradutor se esforce para reproduzi-la — e esse esforço, aliás, não lhe será dispensado.
Trata-se, de fato, de uma quase impossibilidade, em razão de características intrínsecas do original — seja nas vertentes lexical ou sintática — que não são facilmente trasladáveis a outro ambiente linguístico. E nos restrinjamos aqui apenas à esfera da linguagem, abstraindo questões culturais, geográficas e temporais, que acrescentam inúmeras complicações. Faz sentido, por isso, a conclusão do tradutor, embora óbvia, de que os “livros têm grande diferença nos originais”. O problema é que os originais muitas vezes não são acessíveis, a não ser via traduções. Caso do próprio Eclesiástico.