A qualidade do literário depende, dentre outros tantos fatores, do modo como são trabalhados contrastes, variações, desníveis. Depende de como são criados e tratados os relevos do texto. A escritura monotônica, que transita por longa planura da primeira à última página, não terá méritos literários. Quanto maior a beleza do trajeto entre picos e vales, maior o valor de um texto.
A tradução, como escritura que é, também tem que sulcar, na planície do papel em branco, vincos que instilem os instigantes desníveis que espera o leitor. Não basta usar normógrafo e aranha trinor. A transferência não se faz de maneira mecânica. Picos presentes no original podem não ser trasladáveis diretamente à tradução, na mesma posição. Não raro será necessário fazer série de adaptações para provocar o mesmo relevo, para fazer o leitor trafegar por picos e vales semelhantes, que lhe dêem sensações similares àquelas perceptíveis no original.
Sempre será um exercício puramente artesanal, dependente de longas séries de tentativa e erro. Efeitos estéticos não são facilmente transferíveis e repetíveis. Mas é exercício obrigatório esse de, traduzindo, esculpir o texto em relevo, buscando emular desníveis e recuperar contrastes.
A importância de relevos em textos em geral e na tradução está vinculada à ânsia pela oscilação e à aversão pela monotonia. Em busca, afinal, de emoções, o leitor espera surpresas e deslumbres a cada página. Não necessariamente texto “montanha-russa”, que oscile de maneira vertiginosa e até desconfortável, mas que traga, com proporções de bom gosto, o prazer do encantamento oportuno. Relevos na justa medida.
Na tradução, é preciso fugir do óbvio e da planura excessiva — especialmente quando não condizente em absoluto com o original. Cortes abruptos no tecido gramatical ou lexical não deveriam — com o argumento de domesticar o texto para o leitor mediano — ser “arrumados” na tradução. O tradutor-reescritor muitas vezes tem de escapar à tentação de explicar o texto. O autor não necessariamente fornece guias de leitura. Rememoro o “repugnatio benevolentiae” leminskiano, no qual o autor se recusa a oferecer “mapas” ao leitor.
É preciso, na tradução, ousar tanto quanto o autor do original, se necessário. O tradutor não precisa oferecer guias nem mapas ao leitor, que deverá aprender a se virar sozinho. Cortes abruptos — relevos — fazem parte do texto literário e especialmente da “alta literatura”.
Rupturas com a linguagem padrão precisam ser identificadas e impressas, na tradução, em relevo semelhante, mesmo que não nos mesmos pontos do texto. Nesse aspecto — como em muitos outros — o tradutor tem de trabalhar com boa noção de método. Vale aqui a prática da compensação, que leva o tradutor a respeitar as ondulações do texto, mas não exatamente — porque nem seria possível — a posição precisa de cada onda. Pode até mesmo haver certa liberalidade no tratamento de parâmetros como a amplitude das ondas — ou a altura dos picos — desde que a musicalidade textual não se perca.
Acidentes textuais — intencionais ou não — devem ser recuperados na tradução. A interpretação do que é o não “acidente” sempre poderá variar, mas cabe ao tradutor atuar como árbitro — pressentindo, em lugar do futuro leitor, a melhor apreciação a fazer de aparentes desvios de linguagem.
Acidentes, oscilações, desníveis — relevos de todo tipo, enfim — são parte integrante de textos em geral, mas especialmente de textos autorais. A transformação de conjunto de saliências em planura — mesmo que se usem valores médios quaisquer — não condiz com a função da tradução do texto literário.