Tradução de alto original

Deixe a decisão e toda a razão ao leitor
João Guimarães Rosa
29/09/2016

Traduzir como se estivesse escrevendo o original. Ou ao revés, como diria Guimarães Rosa: escrever um livro como se estivesse traduzindo de “alto original, no plano das ideias”. Nessas traduções, diria Rosa, “nunca sei se estou acertando ou falhando”. Quem saberia?

Não é mesmo fácil encontrar pedra de toque que lhe dê a medida do certo e do errado numa tradução. Mesmo em tradução feita com esmero, sempre paira a dúvida. O detalhe que ajusta ou distorce. A sutileza que pode separar a imitação da verdadeira tradução. Não se busca o ersatz, mas nada menos que o novo original.

Guimarães Rosa estava certo, não? O novo texto não seria integralmente original. Entre a ideia e o texto sempre medeia a tradução. O sentido ainda bem aceso na ideia, o pouco tempo passado, a memória viva e fresca. A força vibrátil pulsando através do encadeamento das palavras, do original para o texto traduzido.

Lá no alto, o original. Elevada matriz da qual decorrem todas as palavras e todos os textos. Cá embaixo, o esforço por decifrar, o empenho em traduzir. Escrever como quem traduz. Sangue fluindo rápido pelas veias do texto. Texto pulsante, sôfrego por revelar todo o sentido. Sentidos jorrando no final: veias abertas para o leitor.

Nessa tradução de alto original, imprimir ares de literatura. Buscar encadeamentos de palavras que mantenham reservas de sentidos. Toda a riqueza que traduz o termo literário. Captar as dissonâncias, as flutuações estáticas, toda a sinuosa inconstância. Fixar significados errantes e ariscos, mesmo que temporariamente. Texto que traga o traço da própria vida; que absorve e devolve, em sentidos, a expressão mais fina do que se pode entrever no plano das ideias.

Escrever como se estivesse traduzindo. Caprichando na delicadeza da expressão. Tentando contornar a crônica incapacidade da linguagem de exprimir-se com precisão. Tentando reconstruir aquele conjunto outrora harmonioso de sentidos que se vai dissolvendo lentamente sob a ação do tempo. Esse conjunto sobre o qual vai obrando lentamente, persistentemente a força entrópica da dispersão. Como, então, ainda tentar manter a coesão nesse encadeamento que chamamos tradução?

Nunca vamos saber, mesmo, se estamos acertando ou falhando. O plano das ideias é plano muito elevado. Há que alçar a vista, tentar captar todo sentido possível. Mas não alcança a visão, nem nenhum outro sentido. Capta-se, sim, mas não tudo. Não o suficiente para decidir se se está acertando ou falhando.

Buscar inspiração lá no alto. Fazer descer o original do plano das ideias para avivar um encadeamento mortiço de palavras. Depois, fazer emergir do texto como que vozes mortas. E dar-lhes vida. Eis aí a essência da tradução.

Escrever como se estivesse traduzindo. Identificar — para depois emular — mecanismos de significação. Tatear significados que se arqueiam sobre o texto, para só roçá-lo de leve, deixando leve rasto. Recobrar palavras cujo frescor e — pior — o próprio sentido original se haviam dissolvido pelo caminho.

Não tinha como decidir entre o acerto e a falha. Definição não havia, precisão não havia. Havia só tradução. Significados instalados apenas provisoriamente na cadeia de palavras. Invólucro frágil e cambiante.

Por que mesmo haveria que decidir entre falha e acerto? O encadeamento de palavras, com toda a sua plasticidade, imprime propensão anárquica aos sentidos. Como corrigir isso?

Não há por que decidir entre acerto e falha. Pelo menos não agora. Deixe a decisão e toda a razão ao leitor. Deixe que entrose o texto físico — o encadeamento de palavras — com a sutileza das ideias e os sentidos que se lhe podem atribuir.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho