O que mais me consola é especular que, sobre a tradução, tudo ainda está por ser dito. Rasgue-se tudo. Nada do que se disse é definitivo, assim como tampouco é definitiva uma tradução qualquer. Perguntam como escrever tantos textos sobre tradução — há tanto assim a dizer? Tanto quanto se queira — só depende de quantas leituras se queiram fazer da tradução ou, melhor, do processo tradutório.
Sempre se pode reescrever o texto, reescrever a tradução, reescrevendo também o original. O original é único, mas certamente não definitivo. Esse mundo e o texto sugerem tantas tentações — tantas quantas se queiram imaginar. Sempre se pode acrescentar, prolongar. Tentáculos do original esticando-se para sobreviver na tradução.
O original como que se prolonga na tradução. Extensão do original seria a tradução. Extensão de vida, nova chance se lhe dá. Chance de sucesso, chance de olvido. Uma chance mais. Pela prolongação do texto e seu deleite, vale a pena o risco.
Tradução, derrame de palavras que se espraiam à espera de algo ou alguém que as reúna e lhes dê sentido. Chega o momento em que conter o derrame é preciso — conter tanta imaginação. Represar a criatividade para lhe dar forma e sentido. Essas coisas não podem ser apenas fluxo que segue sem direção nem propósito. O original precisa da tradução, mas de maneira contida.
Prolongando-se, no tempo e no espaço, o texto volta a derramar-se, encantando. Talvez com o mesmo frescor — quase o mesmo — que soube exalar então. Prolongando-se, contudo, estiram-se as fibras do texto. Não serão sempre as mesmas fibras — os mesmos perfumes, os mesmos calibres e texturas — que se sentiram lá atrás. Algumas lá estarão arrebentadas — fios desencontrados, fibras desfiadas, clamando reforço ou substituição.
Nesse desencontro de fibras, à realidade às vezes custa irromper, prevalecer. Na leitura, o leitor tenta impor suas idéias ao procurar amoldar o texto a seus conceitos e desejos. Vontade expressa no texto é a tradução. Tudo aquilo que ele, tradutor, espera do texto. Inconscientemente, claro. Quer ler algo que não está no texto, algo que tão bem ali se encaixaria — como é que o autor não pôde ver algo óbvio assim? Algo que ele mesmo, tradutor, queria ter escrito — e agora lhe surge a chance.
A realidade nem sempre serve bem à literatura. Na tradução literária, segue-se — por que não? — a mesma linha. Trabalha-se com realidade algo distorcida. Joga-se com a realidade — melhor matéria-prima da ficção, assim como o original é matéria-prima de sua tradução.
Não que o tradutor prefira fixar-se entre o obscuro e o absurdo — impor cegamente sua falsa leitura para fazer prevalecer seus anseios, e não a realidade ali tão evidente, tão flagrantemente evidente. O original e a maneira de decifrá-lo — isso que chamamos leitura — impõem processo, digamos, participativo. O texto não se lê só, tradutor.
Entre o obscuro e o absurdo floresce isso que chamamos tradução. Nesse espaço vive e milita o tradutor. Milita nas sombras, à sombra do original e seu autor (se houver). Tenta realizar o absurdo — reescrever o mesmo texto, igualzinho, como se seu novo texto fosse o mesmo original que lera na primeira leitura — ou teria sido na segunda, ou terceira? Quem sabe mescla de todas, como sugestões que se vão superpondo e criando novas imagens.
Além do obscuro, além do absurdo, ao tradutor cabe reconciliar texto traduzido e original. Eis aí o objetivo último de toda tradução. Textos compatíveis, reconhecíveis um no outro. Reconciliar autor e tradutor — dois criadores separados pelo tempo e por algumas camadas de prestígio.