Tradução como fantasia: mistificação da ficção

Fantasiar faz parte da natureza humana, na forma de ver o mundo, na forma de ler o texto
01/08/2012

Fantasiar faz parte da natureza humana, na forma de ver o mundo, na forma de ler o texto. Toda tradução tem um pouco de capricho e fantasia. Necessidade de ver o mesmo texto com outro olhar — não com o olhar do outro, mas com o seu novo olhar. Viver o texto velho como invenção sua — quebrar o molde e verter o fluido em novas ranhuras.

Talvez mera repetição de um processo tão antigo quanto o mundo: a busca do novo pela repetição. O molde do inovador por métodos surrados. Gastura da mente ao comparar o texto com antigas gravuras. Ilusão da repetição. Entalhes, ranhuras pelas quais escorrem idéias que buscam idéias repetidas, caminhos pré-percorridos.

Não há abandonar o labirinto sem fio-guia. Não há traduzir sem trilhar caminhos gastos, sulcados por tantos passos. Guias, trilhos no chão. Sinais, nada mais. Tudo o que atrai o tradutor à beira do abismo: velha tentação de inovar. Cunhar texto novo, seu. Quebrar o molde e enterrá-lo. Quantos não conseguiram fazê-lo? O crime perfeito do tradutor que rouba o original e o assina como seu.

Não sei nem se tentação ou simples inescapável atavismo. Conduta demasiado humana. Sonho do tradutor: ver como seu o texto do outro. Fantasiá-lo de suas próprias roupagens, modernas ou antigas. Pouco importa. Importa é vivê-lo como experiência nova: enxergá-lo como sua própria invenção. Não foi mesmo ele quem o escreveu? Como culpá-lo pelo sentimento mais óbvio?

Simples repetição. A ser evitada, talvez — como esforço sobre-humano —, mas no fundo irrefreável. Como palavras que se repetem em desordem calcada na ordem original. Tristes repetições em língua — como o português — que aspira à inovação em cada parágrafo, cada frase. Inovar como forma de manter distâncias e marcar diferenças.

Entrar no texto como quem entra na sala de espelhos. Repetições, imagens de imagens. Mistificação. Imagens que tentam reproduzir imagens e, em cada reflexo, perdem definição. Palavras que tentam reproduzir palavras e, em cada tradução, perdem sentido.

Inovação, fantasia. Como ler sem fantasiar, se a literatura nos arrasta para o campo da ficção? Como traduzir sem se fantasiar de autor? Lobo em pele de cordeiro, talvez. Tradução como violência e usurpação. Mas — não acham? — antes isso que expulsar o sonho de seu leito mais caro e natural.

A sua própria imagem refletida no texto de outrem. Narciso encantado. A perda de todos os sentidos: torpor fatal e fim retratado em lenda. Arrastado pelo sonho de um texto todo seu. Retrato seu na página-espelho.

Como, afinal, ver a tradução — aquilo que você escreveu, com tanto sangue e suor — como algo alheio e antigo? Que não apenas pertence ao passado, mas ao outro. Viver o texto novo não como o inventor vê seu invento, mas como o gravador que reproduz sempre a mesma obra a partir do mesmo molde. Mago da objetividade, mas menos humano — e, principalmente, menos possível.

Viver aquele texto como tela branca, céu vazio, em busca de pintor. Águas demasiado plácidas, sem mínima onda que perturbe e gere movimento e imaginação. E devanear. Devaneando, mergulhar a pena naquele espelho. Imprimir movimento, enfim. No fim da tempestade — e tempestade virá — sobreviver ao texto, emergindo como tradutor-autor. Demasiado humano, simplesmente.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho