Tradução como experimentação, metáfora e mudança

Diria Fernando Pessoa que a cultura consiste em “estabelecer confusão intelectual, em obrigar a pensar por meio do conflito de doutrinas”
01/05/2007

Diria Fernando Pessoa que a cultura consiste em “estabelecer confusão intelectual, em obrigar a pensar por meio do conflito de doutrinas”. É o embate de idéias e doutrinas que provoca a cultura, que faz girar o eixo do intelecto, que movimenta o fluxo do pensamento. A tradução é uma das ferramentas mestras desse embate, a cunha que se põe no meio de duas línguas ou de duas culturas — para afastá-las ou nivelá-las.

A literatura não é apenas inocente ficção, mas também terreno onde o embate de idéias e doutrinas se apresenta fero. As diversas formas de encarar a literatura — mesmo numa época em que “escolas literárias” já não fazem sentido — são ideologias com arestas vivas, prestes a entrar em fricção. Quando se conjuga a crítica literária e a crítica de tradução, as possibilidades de encontrar conflitos — e de gerar cultura — se multiplicam selvagemente.

A tradução é o meio por excelência da polêmica e do desencontro. Quanto menos exata a disciplina, maior o espaço para controvérsias. Literatura não é, nem de longe, disciplina exata. A tradução, que pouco tem de exata, quando aplicada à literatura, gera um potencial enorme de conflito. Multiplicam-se as alternativas de interpretação. Tanto que parece não mais haver sentido em considerar a tradução como “interpretação”. Melhor seria considerá-la como uma forma de construção textual.

Mas mesmo se se considera tradução como interpretação, trata-se de um processo sujeito, como diria Philip Lewis, teórico desse oficio-arte, a uma exigência contraditória. Exigência que determina a complexa condição do tradutor, obrigado a percorrer descalço o fio da navalha. De um lado e de outro, dois precipícios. A dupla e simultânea fidelidade que demanda o original: tanto à linguagem e à mensagem do texto primeiro quanto ao rígido molde da nova língua, tão cioso dos contornos da mensagem.

Feliz seria o tradutor se pudesse simplesmente manter o olhar à frente, não olhar para baixo, para os lados, mesmo com os pés lanhados. O problema é que parece não haver meio-termo. Há que saltar, para um lado ou para o outro. E, qualquer que seja o lado escolhido, será sempre o lado errado — cúmulo das maldições.

Traduzir não é simples interpretação. Impõem-se duas interpretações, duas escrituras. Mutuamente excludentes. Fato que, novamente citando Philip Lewis, condena toda tradução à insuficiência. Traduzir apenas não é suficiente. Vai sempre faltar algo, sempre vai haver algo ou errado ou medíocre. Carência é a marca de toda tradução. É algo que não raro o leitor nota e sente. Algo que o tradutor sente com muito mais intensidade. Sente não apenas no ato tradutório, mas depois — na releitura, ou na crítica da tradução.

Não se trata, em absoluto, de propor um álibi universal para todo tradutor e toda tradução. Não é tão difícil identificar uma tradução — ou um tradutor — simplesmente ruim. Trata-se, sim, de medir ou comparar dois bons textos — original e tradução. Ambos honestos, ambos feitos com cuidado. Mesmo nesse caso, a insuficiência parece saltar aos olhos. É preciso, de fato, olhar a tradução com outros olhos. Com olhos que lêem um outro texto, não a suposta réplica de um original inacessível.

A única forma de enxergar a tradução como algo que valha a pena — como um texto que se julgue ombrear com um original qualquer — é admitir e assumir o risco de vê-la como experimentação, como metáfora e mudança.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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