Qualquer tradução será sempre, quase por definição, rascunho. Obra inacabada, à espera de um leitor que lhe dê sentido. À espera do crítico que a chancele ou destrua. À espera de novo tradutor que a renove, que a refaça a partir dela mesma, tradução.
Rascunho que é, o texto traduzido se move sob o signo do provisório, da instabilidade. Em toda tradução há uma espera nunca satisfeita, há uma incompletude perene que nasce de sua própria condição de cópia imperfeita, de decalque que leva do original impressão desbotada, esvaecida. Trata-se de um defeito de origem, mas também de um desafio instigante, daqueles capazes de estimular a inventividade e produzir obras — por que não? — memoráveis.
De ponto de vista semântico, o texto naturalmente provoca dúvidas e questionamentos que, no leitor, muitas vezes, não despertam mais que mera curiosidade — quando não passam simplesmente despercebidos. O tradutor, porém, tem que se haver com tais dúvidas a cada instante — e diante delas decidir, com maior ou menor grau de certeza. Há balizas — como não? — mas daquelas que deslizam sob pressão.
Dúvidas, ou alternativas de textos, são não raro esclarecidas com segunda ou terceira leituras. Mas também pode ocorrer o inverso: releituras que aprofundam incertezas e provocam doloridas reinterpretações do texto. Para o tradutor, um inferno sem fim — de dimensão tamanha que pareceria mais útil não voltar ao texto, para não atiçar novas dúvidas, para não provocar novos deslizamentos em terreno movediço.
De ponto de vista lingüístico, o ato tradutório surge como elemento de perturbação. É quase um processo antinatural, que quer extrair da linguagem aquilo que ela jamais poderá dar. Pode-se comparar a tradução a uma espécie de choque entre sistemas, em que um deles procura prevalecer sobre o outro. Revela-se, no processo, a solidez ou a fragilidade de cada sistema — ou, por outro ângulo, a solidez dos conhecimentos do tradutor sobre cada um dos sistemas que manipula.
Não só o texto original não sai ileso do processo tradutório, mas também a língua de chegada. Esta sofre, com maior ou menor intensidade, os influxos, as pontadas da língua do original, que intenta manter-se viva, mesmo como rastro, no texto traduzido. A tradução representa um teste para a força de um idioma. A língua do original pode transigir ante sistema lingüístico mais sólido, mas geralmente faz preponderar a primazia da “originalidade”. Tanta força tem o original que, em estocadas leves mas firmes e constantes, perfura a membrana da outra língua e emerge em estruturas exóticas, neologismos e contorcionismos sintáticos. Tais deslocamentos são perceptíveis mesmo para olhos leigos, mesmo quando o tradutor trabalha com perícia.
A tradução trabalha contra o vernaculismo, e é talvez o principal elemento de perturbação dos parâmetros “normais” de uma dada língua. Espécie de Occam, monstro lingüístico-semiótico que sobe das profundezas para bagunçar o equilíbrio interior do idioma. Irrupção muitas vezes bem-vinda pelo novo oxigênio que infunde em estruturas surradas e léxicos encanecidos. A perturbação provocada pelo ato tradutório nem sempre é negativa. Pelo contrário, pode ser vista como elemento de avanço e aperfeiçoamento — tanto do texto, individualmente, como do idioma, coletivamente. A carta que envia o original está sempre sob suspeita de poder não chegar. E a mera suspeita — angústia do inquieto — é já criativa perturbação.