Tradução como aposta, jogo de risco e azar

Toda tradução supõe uma aposta, sempre arriscada, sempre sem solução definitiva à vista
01/07/2011

Toda tradução supõe uma aposta, sempre arriscada, sempre sem solução definitiva à vista. Aposta balizada por parâmetros mais ou menos mensuráveis, que deixam margem, brecha, para a insinuação de toda subjetividade. Sempre aposta, como num jogo. Aposta que, ganha, paga menos que mesmo o jogador mais pessimista poderia supor.

Como captar — entender — toda a subjetividade presente no texto e ainda, na passagem para a outra língua, manter o mesmo teor e sabor? Cada trecho, uma aposta, que pode supor tanto redução do teor quanto do sabor, ou de ambos, em troca de outra qualidade qualquer. Clareza, por exemplo, tão ansiada pelo leitor. Quem sabe concisão, ou simplesmente beleza. Vale trocar carga subjetiva por propriedades estéticas. Manter toda sugestão e todas as alternativas, impossível. Melhor apostar, talvez, na precisão — mesmo que à custa não da beleza, mas da entropia que carrega todo texto literário. Pode ser arriscado ou antieconômico deixar no texto original pontas soltas — tão presentes, de forma real ou imaginada.

Imprevisibilidade, que supõe o jogo da aposta. O texto literário é carregado de sugestões e alumbramentos que ali estão para provocar devaneio e deleite. Texto eivado de superfluidades, que fazem o êxtase do leitor e nutrem a vaidade do autor. Não desconheço o papel político, didático, ideológico ou filosófico do texto literário. Mas fazer sonhar e fruir é não apenas preciso, mas fundamental.

Desordem, que deve ser organizada pelo tradutor, no terco trabalho de transposição. As palavras, sua ordem, suas aliterações ali estão nem sempre por acaso. O uso da palavra rara, quase como provocação — fazer o leitor abrir o dicionário ou a internet por puro capricho. Como o próprio autor talvez também tenha de ter feito. Apostar em quê? Imolar sentidos para reproduzir aliterações. Ou buscar a conjunção quase impossível, mas em detrimento do tempo — elemento fundamental em qualquer cálculo de tradução? Toda aposta aqui supõe, nem mais nem menos, uma perda irreparável.

Aposta que envolve impor hierarquias não necessariamente justas — sobrepor a estética ao simples significado (como se poderia fazer com textos poéticos) e, nesse processo, criar sentidos ainda mais belos do ponto de vista literário. Mas distintos, de maneira irreversível, daqueles encontrados no original. Ou priorizar o sentido seco em prejuízo da beleza, do jogo lúdico que faz a alma e a delícia da literatura? De um jeito ou de outro, quem te irá perdoar a infidelidade?

Quem aceitaria sacrificar o arroubo suscitado pela sugestão múltipla e engenhosa — a surpresa, mesmo em expectativa, que captura o leitor, gratifica o autor e faz lucrar o editor? Não o leitor, certamente nem o crítico, se pudessem identificar a perda — o que não é nada evidente. Mas o tradutor o faria, movido pela pressa, pela falta de talento ou pela ausência de imaginação. Sacerdote do sacrifício, faz correr o sangue em troca da solução do problema mais imediato. Justo ou simplesmente prático? Escrever, reescrever é preciso. A sobrevivência do original está também em jogo e o tempo não é elemento desprezível. Tradução que demora demais pode perder a razão de ser.

Aposta irremediavelmente fadada ao malogro mais vil — aquele que, de tão óbvio, é motivo de vexame e vergonha. Garantida será a crítica, mesmo com o acúmulo do esmero. Por que então desprezar o denodo, em favor de jogo seguro mas estéril? Aqui, em jogo de risco e azar, a aposta racional supõe tudo aventurar em benefício de um objetivo literário legítimo: criar.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho