Fluidez e travamento: conceitos presentes no percorrer de uma tradução. Critérios para definir a qualidade ou a natureza do texto traduzido.
Fluida, a tradução tenta parecer original, no que carrega de próprio da língua de chegada. Natural, nacional, doméstica. Velha conhecida, vale como aconchego. O doce amparo do lar, sem os riscos da língua rude lá de fora.
Travado, o texto, como rio de escolhos, carrega tanto líquido quanto sólidos seixos próprios para distrair e embaraçar. Texto de obstrução, tradução.
Fluido, o texto parece vender mais, como escritura risonha, maneira. Leveza feita toda de letras e pontos sobre papel macio. Desliza o olhar, sem pousar, afaga a mão ao passar as páginas.
Travada, cheia de reminiscências e amarguras do original e sua língua, a tradução se revela difícil, desajeitada. Não rende a leitura, não rende à editora. A sintaxe do original transvasa, difunde-se pelo texto traduzido, espalhando estranhezas pela tela da escritura e provocando ora ira ora pasmo. Ira pelo embaraço e o excesso de esforço — necessidade de atenção adicional que gera desinteresse e desgaste, quando não o abandono puro e simples. Pasmo positivo pela descoberta de até então insuspeitadas utilidades, para a língua de chegada, de elementos gramaticais do original. Travamento da leitura, em favor do reconhecimento de detalhes do fazimento do texto.
Fluida, a tradução parece quase natural. Quase original, como escrita mesmo, antes que em qualquer outra, na língua de chegada. Texto escrito para o deleite e o entretenimento — puro prazer de ler por ler. Literatura como simples diversão — e por que querer mais?
Travado, o texto traduzido busca o leitor raro. Livro caro, para poucos. Estranhos prazeres — esporte radical que cede satisfação (ou explosão de júbilo e orgulho) à custa de cota de medo e dor. Terreno acidentado, o olhar sobrevoa rasante e agitado, pinçando em fendas e picos restos do léxico, rastros da estrutura original.
Fluida, a escritura desce mansa do original à tradução. Resultado do esmero de bom tradutor — nada menos que escritor nato, talvez em desvio de função. Mas bom escritor. Conduz pela mão, com cuidado, levando na travessia em águas calmas a letra de margem a outra. Sem sobressaltos, com a leveza da pena precisa e segura. Mais que isso: talentosa.
Travado, pegajoso, o texto. A leitura claudica sob o signo do esforço intelectual. Não tanto prazer, mas trabalho. Maçante, a tradução parece exibir — como texto em transparência sobre texto — aquilo que era o original. Fratura exposta. Vísceras visíveis, livres da opacidade da pele. Todo o processo da escritura revelado.
Fluidez no texto escorreito. Tradução que corre sem pejo, corre fácil e aprazível sob os olhos interessados do leitor. Legibilidade completa. Texto dócil, composto do tempero mais brando e delicado. Leitura como recompensa depois de um dia de cão. Descanso para o olhar, que só se deixa levar pela letra solta e corrente. Tudo o que sempre quis o editor: divertir, prender, mesmo que não enleve.
Travado, flui lento — quase nem líquido, mas pastoso. Travando a leitura, elementos alheios semeiam o incômodo — talvez despertem curiosidade por conhecer o original. Talvez despertem vontade de ler a tradução pela tradução — novo texto recriado e quase autônomo, que pode ser lido sem que se saiba de nenhum antecessor. Como tradução de original perdido. Atração pelo que surpreende — por estranho — e instiga. O velho apego ao arrebatamento.
Fundir, traduzir, os dois num só texto? União impossível dos opostos — tão desejada quanto impossível. Texto que flui lento e nervoso por leito irregular, tortuoso. Nunca corredeira, nunca remanso. Nunca conheci.