Sombra da palavra

O tradutor busca sintonizar o ouvido com o ritmo ditado pelo autor, a fim de retratar no novo texto os movimentos autorais
Clarice Lispector, autora de “Água viva”
02/04/2021

De Lispector, um livro singelo: a reunião de crônicas semanais publicadas no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973. O título: La découverte du monde, traduzido “du brésilien” por Jacques e Teresa Thiériot. Na verdade, não apenas crônicas propriamente ditas — como destaca Paulo Gurgel Valente, filho da autora, na introdução —, mas também reflexões, notas e contos, alguns dos quais apareceriam em outras obras, mais ou menos modificados. Um laboratório, enfim, como bem qualificaram os tradutores, no qual Clarice testava seus textos.

Na coluna de 14 de setembro de 1968, Lispector discorreu sobre o ato de escrever, entre outros temas. A autora o define assim, em minha tradução do francês: “Escrever é procurar compreender, reproduzir o que não é reproduzível, é sentir até o fundo o sentimento que ficaria apenas vago e sufocante”. Não sei se foi exatamente o que Clarice escreveu no original, que deliberadamente prefiro não consultar. Mas creio que o sentido todo não se perderá nessas idas e voltas da tradução.

Escrever é buscar entender. Lembra-me uma frase de Leminski/Cartesius, só que sobre tradução: “Provar que compreende, só traduzindo”. O autor, como o tradutor, tenta inscrever no texto sua compreensão da realidade e/ou da ficção, das múltiplas alternativas que a realidade e o original apresentam. Há também, e de maneira muito clara, o esforço de autocompreensão, algo que certamente sobressai em Clarice e que não deve ficar fora do foco da tradução.

No ato da escrita, é preciso interpretar, pôr ordem na horda desgovernada de ideias que transbordam a mente. Assim também, na tradução, importa organizar os sentidos que pululam entre as palavras, ora ligando-se a elas, ora renegando os velhos elos.

Escrever é também procurar reproduzir o irreproduzível. Buscar proteger, conservar, trasladar a fala e/ou o pensamento — que são, a rigor, irreproduzíveis no texto escrito, em razão, da estreiteza estática deste e da dinâmica elasticidade daqueles. A brusca mudança de meio provoca confusão natural e permanente sentimento de insatisfação com os resultados dessa pobre translação.

Traduzir, tarefa sabidamente impossível, é também tentar reproduzir o irreproduzível. O tradutor busca sintonizar o ouvido, todas as janelas da percepção, com o ritmo ditado pelo autor, no momento imediatamente anterior à escritura do original, a fim de retratar no novo texto os movimentos autorais. Conseguiria fazê-lo o leitor? Tampouco o tradutor, o que não o exime de tentar.

Escrever é também explorar ao máximo, em toda a sua extensão e profundidade, sentimentos que de outro modo ficariam guardados, sufocados ou apenas vislumbrados. É de certa maneira esforço de pesquisa interior, um mergulho no fundo da alma, que talvez só se consiga operar quando se aceita o desafio de traduzir em palavra escrita toda uma torrente de pensamento que nem sempre é coerente e organizada.

Assim também, na tradução, sente-se fundo a dificuldade de exprimir os sentidos e os sentimentos mais complexos, que na simples leitura geram impulsos inefáveis, mas perceptíveis e concretos. Ao tradutor, resta perfurar a pele, o osso do texto; penetrar-lhe o tutano e inventar ali, num intenso esforço de pesquisa, seu novo sentido.

Não será tarefa fácil, claro. Escrever é ofício pedregoso, assim como traduzir, em especial quando se procura fazê-lo bem. Os pensamentos são esquivos, breves relâmpagos na mente, e nem sempre é simples captá-los em sua inteireza. As palavras são ariscas, na mente e no papel. Cada palavra é muito mais que ela mesma. Como também diria Clarice, “toda palavra tem a sua sombra”. E essa sombra também impacta a tradução.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho