São hoje inumeráveis os estudos, ensaios e textos acadêmicos sobre tradução. Eis aí uma área que experimentou grande evolução nas últimas poucas décadas. Já tive oportunidade de comentar, neste espaço, diversos desses textos, de diferentes autores e linhas de pensamento. Trata-se de fonte inesgotável de reflexão sobre esse estranho e antigo ofício, que ao leigo parece tão desinteressante e que, na esfera literária, tende a habitar a margem.
Bem mais antigos e tradicionais são os textos — muitas vezes curtos e pouco ambiciosos — que redigiram os tradutores sobre suas próprias traduções. Em geral, são pequenas obras que figuram como explicação, prefácio ou posfácio das mesmas traduções. Não raro, são passagens valiosas.
Outro dia me deparei com um desses textos. Trata-se de Remarques à propos de la traduction de Milton, de François-René de Chateaubriand. O autor francês traduziu, entre outras obras, o poema épico Paradise lost. O trabalho, extenuante, certamente muito o marcou. Suas impressões e reflexões sobre o processo estão nesses seus “comentários”.
Antoine Berman comenta que Chateaubriand dedica linhas inesquecíveis, nas Remarques, ao “sofrimento-do-traduzir”; e que “nenhuma reflexão acerca da tradução pode calar sobre esse aspecto de sofrimento”.
De fato, naquele texto Chateaubriand dá testemunho admirável da complexidade do ato tradutório — e do sofrimento a ele associado. Já de início, observa que teria empreendido não tradução “elegante”, mas tradução literal, “em toda a força do termo […] uma tradução que uma criança e um poeta poderão seguir ao longo do texto, linha a linha, palavra a palavra, como um dicionário aberto diante de seus olhos”. Aponta, portanto, para uma pretensa precisão absoluta, uma literalidade certamente impossível de atingir, mas cuja mera tentativa parece em si meritória.
Como argumento em prol da literalidade de sua tradução, o autor francês critica a composição de Milton — considerada “ilógica” em alguns trechos — e os erros que ela conteria, provocados, entre outros fatores, pelas circunstâncias de sua construção — cegueira do autor e consequente dificuldade de revisão do texto. O tradutor francês chega a opinar que sua versão não deve ser considerada falha nos pontos em que as ideias (do original) carecem de consequência ou precisão (!).
Revelando, contudo, os limites da literalidade, Chateaubriand menciona que se viu obrigado, aqui e acolá, a adicionar ou suprimir alguns elementos, em razão de peculiaridades ou falhas do original. A literalidade de Chateaubriand esbarra nesses “erros” do autor, que são devidamente corrigidos na tradução…
De todo modo, o tradutor mostra-se obstinado. Relata que revisou e/ou refez o texto traduzido diversas vezes, em busca da supressão de erros e de uma literalidade plena. Comenta que leu todas as traduções de Paradise lost em outros idiomas conhecidos. Menciona que consultou todos os amigos que lhe pudessem ser úteis. Ainda assim, desculpa-se pelos erros que permaneceram — e sempre há erros, essa causa eterna de dor —, mas não sem alertar o leitor para a diferença entre o sentido falso (erro) e o sentido disputável ou suscetível de interpretações diversas. (Pobre leitor, que dificilmente terá condições de fazer essa diferenciação, à exceção do estudioso da obra original.)
Narra-se, enfim, um processo doloroso, em muitos sentidos. E isento de glória. Como afirma Chateaubriand, ao final de suas Remarques: “Um tradutor não tem direito a glória nenhuma; basta-lhe demonstrar que foi paciente, obediente e laborioso”. Fica a recomendação.