Sobre uma maneira etimológica de traduzir

Existem inúmeras estratégias de tradução. Sou tentado a dizer que existem tantas estratégias de traduzir quanto existem tradutores
01/02/2009

Existem inúmeras estratégias de tradução. Sou tentado a dizer que existem tantas estratégias de traduzir quanto existem tradutores. Não chego a tanto. Mas que há várias, há. Pode-se traduzir “literalmente” (no sentido tradicional ou em outro sentido, como o sugerido por Antoine Berman). Pode-se traduzir pelo “sentido” (em contraposição à “letra”). Pode-se fazer tradução livre. Pode-se fazer tradução domesticadora. Pode-se traduzir de maneira ideológica. Pode-se, também, traduzir como quem se apossa — de maneira mais ou menos violenta — do texto do outro.

Uma outra estratégia possível é a estrangeirizante, que procura conduzir o leitor, no seu próprio idioma, a uma viagem por língua e cultura alheias. Variante dessa estratégia seria uma espécie de “tradução etimológica”: orientar as escolhas lexicais não meramente pelo sentido, não meramente pela letra, nem mesmo pela conjugação dos dois critérios; mas pelas raízes mais profundas das palavras. Usar o étimo como critério decisivo para solucionar um problema tradutório.

Não é exatamente estratégia fácil, mas pode provocar efeito interessante se usada com coerência (ou seja, não como alternativa esporádica ou isolada, mas como norma dentro do texto traduzido). Não é algo que se possa usar com todos os pares de línguas. Há que existir um certo fundo comum, uma certa história partilhada. É possível, até certo ponto, empregá-la com inglês e português — e, em maior medida, com italiano e espanhol —, mas certamente não com japonês e francês.

A tradução etimológica busca não apenas identificar um fundo comum entre duas línguas, mas fazer reviver mesmo suas raízes. O resultado tende a ser não apenas estrangeirizante, mas também, e principalmente, arcaizante. Não é para qualquer leitor, e certamente não é para qualquer tradutor. O estranhamento pode atrair, mas também pode repelir, com força ainda maior.

Identificar o étimo, depois buscar na língua de chegada palavra que o utilize de forma coerente com o sentido do texto. Impossível será, muitas vezes, evitar o sabor obsoleto. Sabor que poderá fazer o deleite de uma nata de leitores, mas que certamente espantará a maioria. Será uma tradução “de autor”, com o traço distintivo daquele que se esmera numa arte que, de antemão, já se adivinha impenetrável. Não será apenas estrangeirizante, nem somente arcaizante, mas deverá trazer, com inevitáveis neologismos, também o gosto do novo e do inusitado.

Já se disse que a literatura é a única arte que não precisa ser exibida. Escrever, como arte, pode ser em si a recompensa do artista, independentemente de reconhecimento ou fama. Traduzir etimologicamente seria variante da escritura como arte. A tradução como arte: ver no novo texto, calcado em étimos, objeto que, para ser admirado, não precisa ser lido (ou, se lido, não precisa ser de todo compreendido).

Jogo de espelhos: texto que se espelha em étimo para projetar-se, filtrado pelo tradutor, em molde novo talhado em raiz velha. O étimo contém a semente de todo o sentido de suas derivações. Caberá ao tradutor adorná-lo com afixos coerentes com a dinâmica da língua de chegada (inevitáveis os neologismos). Caberá ao tradutor tecer, em torno de raízes mortas ou esquecidas, a tênue teia de sentido que estenderá ponte arriscada entre línguas e tempos distantes entre si.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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