Sobre tradução e extensões de sentido

A literatura opera, em parte, na extensão dos sentidos da palavra
O sociólogo francês Roger Bastide
01/09/2011

A literatura opera, em parte, na extensão dos sentidos da palavra. Tirá-la do campo do comum para sacralizá-la, imortalizá-la em conjunto singular. Dar-lhe novos sentidos, usá-la em colocações ou contextos pouco usuais. Essa extensão de sentidos é o que faz martírio e júbilo do tradutor. Não basta traduzir palavra por palavra: há que identificar extensões de sentidos e buscar soluções para o irresolúvel: traduzir inventando.

Quanto mais versátil a palavra, quanto mais extenso seu espectro de significação, maior carga e uso literários terá. Mas isso é coisa de dicionários. O escritor opera em outro campo, o da criação. Faz parte da arte da escritura saber esticar a capacidade de significação da palavra, a fim de criar efeitos e sensações que surpreendam, comovam, choquem, deleitem. Marquem. Imprimam-se inextinguíveis na mente do leitor — se possível, na memória de gerações de leitores.

Faz parte da arte do tradutor não só identificar extensões de sentidos, mas saber dar-lhes sobrevida em outro ambiente. Transplantes. Nem sempre será suficiente recriar o contexto. Certo, o sentido de uma palavra pode ser ampliado ou modificado pelo contexto — metonimicamente — ou pela “collocation”. Mas a significação literária demanda mais arrojo e invenção. Buscar a palavra correta — pesquisa tanta — é apenas o mínimo. A busca poderá não ser frutífera. Alguma palavra-valise poderá resolver, mas é sempre recurso arriscado se não tiver sido usado no original.

A extensão de sentido pode não ter sido deliberada. Pouco importa. Identificada, sentida, interpretada como tal, terá de ser levada em conta na tradução. O não-intencional também faz parte do literário. Às vezes é na interface com o leitor que o efeito — o mais intensamente literário — se precipita. Imprevisível o texto, de caminhos tortuosos e inescrutáveis.

Nem falo das palavras que, por peculiaridades lingüísticas e culturais, carregam sentidos naturalmente extensos e complexos. Essas são a cruz corriqueira do tradutor. Roger Bastide, em prefácio à tradução francesa de A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, jogou a toalha ao deparar-se com “molecagem” (ou “molequagem”, como se imprimiu). Preferiu deixar a palavra no original e explicá-la em nota de rodapé. Como criticá-lo, quando se percebe a carga de sugestões que a palavra brasileira dispara?

Mais complicadas, do ponto de vista da tradução, são as extensões de sentido criadas pelo escritor — deliberadamente ou não. Essas são incontornáveis. Não há nota de rodapé que explique, pois o que está em jogo é o “literário” do texto. Toda a complexidade tem que ser mantida no texto mesmo e não remetida, como desvio, ao pé da página.

Do tradutor se exige não apenas domínio técnico da língua — entre tantas outras qualidades —, mas enorme sensibilidade lingüística para captar elementos que constituem o cerne do “literário”. Manter toda a complexidade do original é, talvez, um dos grandes desafios da tradução. Parte da complexidade do texto literário se deve às extensões de sentido.

Identificá-las é primeiro passo. Mais complexo e incitante é traduzi-las. Extensões de sentido numa língua podem não ter correspondência direta em outra. Excessos em direções distintas — nem sempre comensuráveis. Dispersão e esparramento — significações derretendo-se, escorrendo doces pela página, projetando melopéias nos olhos e na mente do leitor. Aí mora a arte da tradução. Operar no limiar. Mediar. Martírio e júbilo do tradutor.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho