Sobre Guerra e paz

Uma das particularidades desta obra-prima é a relação tensa entre o russo e o francês, como que fazendo paralelo à disputa entre as respectivas nações
Tolstói, autor de “Guerra e paz”
01/12/2020

Guerra e paz, de Leon Tolstói, é um livro amplo demais para ser apreendido de uma só forma. Incita visões diversas, inscreve e inspira filosofias diversas, diversos modos de encarar a história. Li uma tradução antiga, disposta em nova roupagem. Tradução de 1942, edição de 2019. Tradução indireta, via francês, de Gustavo Nonnenberg. Texto que fez longa viagem no tempo e ainda atravessou três línguas distintas.

Uma das particularidades da obra é a relação tensa entre o russo e o francês, como que fazendo paralelo à disputa entre as respectivas nações. Tolstói usou fartamente o francês nos diálogos, algo que a tradução publicada pela Nova Fronteira suprimiu parcialmente, mantendo apenas “expressões em francês de fácil transposição para o português”.

Ainda assim, sente-se o espírito francês muito presente no texto, não apenas pela temática da guerra contra Napoleão, mas também pelo caráter afrancesado da aristocracia russa da época (1805-1820). Tanto era francófila a elite russa que, em clara ironia, Tolstói faz uma personagem perguntar, em conversa sobre as multas que seriam aplicadas àqueles que usassem a língua francesa nos salões moscovitas: “Mas como dizer isso em russo?”.

De fato, nota-se em mais de uma ocasião, mesmo nessa tradução parcialmente despida do francês, o quanto a aristocracia russa dependia do idioma de Napoleão para se exprimir cabal e claramente. Noutra cena, lemos Helena exprimindo-se primeiro em russo — sem sucesso — e depois, agora sim, com mais confiança, em francês, para explicar à própria mãe a legitimidade de seu segundo casamento: “… pois lhe parecia que em língua russa seu caso sempre era complicado”.

Nota-se também certa tensão no texto entre a história individual e a história coletiva, entre os atos singulares e sua soma (a vida mesma), entre o livre arbítrio e o determinismo histórico, entre as palavras isoladas e seu contexto, entre a singularidade da verdade e sua diversidade infinita nos distintos espíritos humanos. Platão Karataiev, companheiro de prisão do protagonista, Pierre (note-se o nome francês), “não compreendia nem podia compreender o sentido das palavras tomadas isoladamente… Era incapaz de compreender o valor ou o sentido de um ato ou de uma palavra considerados à parte”. E quem seria capaz de fazê-lo?

Já Pierre, em suas fases místicas, se acabrunhava com a dificuldade que os colegas maçons tinham de entender sua verdade individual da forma como ele próprio a entendia. Lemos que “ele [Pierre] sentia […] a diversidade infinita dos espíritos humanos, a ponto de uma verdade não se apresentar sob o mesmo aspecto a duas pessoas diferentes. Mesmo os membros que pareciam estar de acordo com ele o compreendiam a seu modo, com restrições e modificações que não podia subscrever, já que seu objetivo principal era, precisamente, transmitir suas ideias a um outro da mesma forma que ele as compreendia”.

A transposição dessas tensões para a esfera da tradução enseja certas reflexões relevantes. Em primeiro lugar, temos a idiossincrasia de cada língua, que torna certas palavras ou expressões quase exclusivas, ou pelo menos muito peculiares, de um dado idioma. É o que exprimem tanto a personagem do salão moscovita — “como dizer isso em russo?” — como Helena, em outro contexto. Em segundo lugar, vemos como é complexa a tarefa de verter um texto de maneira minimamente aceitável, mesmo para um grupo pequeno e relativamente homogêneo — apesar de ilusões tão bem acalentadas.

Na tradução, parafraseando a conclusão da obra do autor russo, há que renunciar à literalidade que não existe e reconhecer a dependência — que nem sempre sentimos — do impulso de invenção … para superar certas tensões.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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