Sobre faltas, silêncios e lacunas

Traduções se fazem, também, com a observação atenta de faltas, lacunas, ausências — deliberadas ou não
01/09/2003

Traduções se fazem, também, com a observação atenta de faltas, lacunas, ausências — deliberadas ou não. Se em um texto os efeitos — sejam quais forem, de aliterações a sonoros choques de palavras — têm grande importância literária, exigindo desvelo do tradutor, não menos relevância exibem os silêncios, os não-ditos, aquilo que se mantém oculto.

Boas traduções se fazem assim. Atentar no ritmo fugidio, por vezes errático, da sucessão de efeitos e lacunas. O “literário” não raro valoriza as ausências sentidas, os claros que se abrem no texto e instigam a curiosidade, desafiam a própria inteligência do leitor. Brinca o autor de esconde-esconde, ora sugerindo aqui, ora semi-expondo ali, outras vezes, sem meias palavras, simplesmente confundindo. Coisas que talvez nem mesmo o autor saiba ao certo o quê.

Na literatura em geral, e talvez especialmente no conto, é a falta que dá o tom propriamente da arte. Não o que se escreve, mas o que se sugere e oculta. É um jogo arriscado, em que não se deve forçar a dose sob a pena de tornar o texto hermético demais, ou mesmo ininteligível. Em doses bem medidas, as lacunas são o charme, e às vezes o estilo. Quem é que, ali pelo meio de um conto do Trevisan, nunca se sentiu meio perdido, sem saber direito quem está falando, ou do que se está falando? Deixar uma parte do conto para o próprio leitor contar, eis o segredo.

Na tradução, perceber e fazer reviver nuanças como essas não é requinte de perfeccionista, mas está na base de um trabalho sério. Traduzir não é se deixar levar pela corrente do texto, mas nele mergulhar até os cantos mais profundos. Bem ali nos interstícios, no curto espaço entre uma linha e outra, entre duas palavras. A cura da má tradução está na leitura atenta, profissional, no trabalho de pesquisa e na determinação de buscar recriar efeitos e lacunas — com fartas doses de criatividade.

O que se chama de “literário”, e o que se chamará de “boa tradução”, se encontra justo nas brechas abertas, nos claros do tecido esburacado do texto. Dizer com rios de palavras é fácil. Abusar da abundância e aborrecer o leitor com torrentes incontidas de páginas é fácil. Sugerir, contar a conta-gotas, narrar com um fiozinho só de letras, fazer da economia índice de elegância e domínio da palavra — isso é verdadeiramente produzir literatura. É uma questão de dominar e trazer o texto em rédea curta, sinal de competência literária.

Não que o literário se resuma a buscar a concisão e a sugestão a qualquer preço, em detrimento da narrativa generosa e liberal. Trata-se da capacidade de dominar uma técnica textual que, trabalhando no terreno arenoso dos sentidos das elipses, cria significados a partir da falta. A ausência de um elemento da colocação, a falta da indicação do falante, a omissão do lance que se pode inferir — são fatores que dão ao leitor a oportunidade de preencher ele mesmo as lacunas. A leitura torna-se, mais do que nunca, tarefa interativa.

Tormento do tradutor, mas também sua redenção, eis aí uma faina pra lá de espinhosa. Seja qual for a escolha, estará errada, de algum ponto de vista. Não há como contentar a todos — de fato, não há nem mesmo como contentar-se. É como ter, a cada página, encruzilhadas de caminhos múltiplos. Traduzir, como ler um bom texto, será sempre preencher lacunas em pensamento, mas deixá-las em aberto na página. Certeza é algo que o tradutor, ao entrar no ofício, deve deixar na porta.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho