Sobre dois tipos de morte do autor

Cito de memória. Acho que foi Geraldo Trentini quem falou. Que o livro só fica pronto quando morre o autor
Ernest Hemingway, autor de “O jardim do Éden”
01/03/2012

Cito de memória. Acho que foi Geraldo Trentini quem falou. Que o livro só fica pronto quando morre o autor. Mas a tradução tem pressa. Não se pode esperar a morte. Então, de certa forma, é a tradução, apressando o processo, que representa não apenas a morte do autor, mas a versão última do livro. Sua forma definitiva, o original, é vertido em outra fôrma.

A compulsão que têm alguns autores para revisar o texto, de maneira obsessiva, é resultado, talvez, da natureza movediça do texto, que não apenas reage plasticamente às tendências perfeccionistas do ser humano, mas as potencializa ao revelar sempre novas facetas a cada nova leitura. É impossível mesmo dar por terminado o texto, de maneira racional. Porque sempre é possível melhorá-lo. Só mesmo uma atitude algo ditatorial pode pôr fim a esse processo. Decisão arbitrária — que simplesmente determina, como final, um ponto qualquer num espectro de infinitas possibilidades.

É preciso terminar o livro, como também, em algum momento, é preciso terminar a tradução. A escritura do original, claro, navega em mares de horizontes mais amplos. A tradução move-se em espaço balizado, que impõe amarras à criatividade do escritor. O problema é que as balizas não se estabelecem de maneira rígida. E, pior, tendem, com o tempo, a mergulhar no terreno movediço do texto. Além disso, fazendo um paralelo com a física do muito pequeno, mesmo no espaço de um átomo pode-se encontrar o infinito. Tudo é uma questão de escala. Na tradução, uma palavra basta para provocar o dissenso.

Trentini menciona a morte do autor como marco do início do livro como texto definitivo. Talvez haja aí um erro. Talvez essa morte seja apenas um momento a mais na trajetória do original. O autor não mais poderá alterar o texto, mas, é bom lembrar, não é apenas o autor que o modifica. Também o fazem editores e, claro, os leitores, a cada leitura. A forma definitiva do livro mais pareceria um mito que não tem lugar no percurso real do texto, que é uma sucessão vertiginosa de versões.

Há outra relação de morte envolvendo texto e autor. Aquela na qual a produção mesma do texto representa a morte do autor. A morte aqui, claro, tem sentido abstrato, significando que o autor não pode mais voltar a interferir no texto, que ganha vida própria e independente daquele que o deu à luz. Neste caso, a morte do autor significa a vida do texto em seu sentido mais amplo. E, ao mesmo tempo, sua ligação a outros “autores” que passam inadvertidamente a mudá-lo. Um desses autores, sem dúvida, tradutor.

Mas voltemos à compulsão pela revisão. Seria medo ou vaidade? Quem sabe as duas coisas, ou uma terceira: indecisão. De toda forma, sentimentos humanos, naturais. Provocados pelo fluxo incessante de idéias que nos dirige e pelo não menos copioso caudal de palavras que as acompanha. Também é natural que, na releitura, esqueçamos aquilo que nos fez optar por uma determinada expressão — e, então, como num lampejo, vejamos a alternativa estilística que, naquele momento, nos parece amplamente superior. Na tradução, claro, acontece processo muito semelhante, só que com ator que tem relação diferente com o original — às vezes mais distante, mas também às vezes mais passional.

Trentini, em sua obsessão, representa muito bem dois fenômenos que, não raro, acometem o escritor. De um lado, o impulso perfeccionista, que o faz extrair do próprio texto aquela versão que lhe parece a mais sublime. E que, ao mesmo tempo, implica a aceitação tácita de que, por ser o texto sempre melhorável, mesmo a última versão será sempre inferior àquela que a sucederia. De outro, a auto-ilusão que o faz imaginar-se autor único e exclusivo de um texto que, mesmo antes de publicado, não é só seu.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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