Sobre as muitas impurezas da tradução

Traduzir é reduzir ao singular — mesmo que por apenas um átimo — aquilo que, em essência, é plural. Daí a suprema dificuldade, daí a extrema fragilidade da tradução, sempre exposta
01/07/2005

Traduzir é reduzir ao singular — mesmo que por apenas um átimo — aquilo que, em essência, é plural. Daí a suprema dificuldade, daí a extrema fragilidade da tradução, sempre exposta — tantas vezes com tanta razão — a críticas as mais ácidas. Por um momento, o tradutor busca congelar — numa palavra, numa frase, numa idéia — aquilo que é uma proliferação de sentidos incansável, e até frustrante, fatigante.

Esse conceito — além de vários outros, muitos seminais — é exposto no recém-lançado Tradução manifesta — double bind e acontecimento, de Paulo Ottoni (Editora Unicamp/Edusp, 2005). O livro apresenta um diálogo fecundo entre Ottoni e seu professor Jacques Derrida. São dez textos de Ottoni, permeados do pensamento de Derrida, e um texto do próprio filósofo francês ao final, traduzido pelo teórico brasileiro.

Vale a pena mergulhar nessa obra, mesmo para quem não é do ramo. Todo crítico de literatura, todo leitor de ficção, todo escritor deveria dedicar algum tempo a uma reflexão sobre o fenômeno, ou acontecimento, que é a tradução. E hoje, felizmente, há já uma oferta, mesmo que modesta, de livros sobre o assunto.

A multiplicidade de línguas presentes num só texto — e a variedade de línguas que se usam para interpretá-lo — transformam a tradução numa Babel em movimento. Captar o instantâneo perfeito desse objeto movediço é a leve tarefa do tradutor. O plural torna-se singular por um único instante; no outro o um já se multiplica de modo insano, incapaz de alcançar a mais débil estabilidade. De fato, o texto — aquelas palavras perfeitamente copiáveis e repetíveis quando apenas no papel — é deturpado pela mera leitura. Quanto mais não deturpará o texto a leitura qualificada que é a tradução.

Para Derrida, a tradução se dá em meio à tensão gerada por duas injunções opostas. A primeira é a transformação, que ocorre na necessária passagem do plural ao singular. A outra é a fidelidade, que também não pode deixar de existir, sob pena de macular irremediavelmente a tradução. E a mácula, aliás, é inevitável — esse telhado de vidro sempre exposto a pedradas de loucos e sãos.

Mas a tradução está, também, irremediavelmente sujeita ao que Derrida chama de double bind. Palavra composta que representa o próprio dilema da tradução: se te traduzo, para sempre e inevitavelmente te corrompo. Não se traduza, então. Absorva-se o conceito, apenas: o duplo vínculo é a necessidade e, ao mesmo tempo, a impossibilidade da tradução. Necessário porque não há leitura, nem mesmo comunicação, sem tradução. Impossível porque não se pode fazê-lo completa ou perfeitamente.

Haverá sempre impureza. Em dois sentidos. Há a impureza do texto original, que dificilmente será transferida, como impureza, ao texto traduzido. E há a impureza produzida no ato da tradução, e em sua interpretação posterior. Há um resto que não é traduzido, e um excesso que, na tradução, extrapola o texto original.

O tradutor é como a criança que recebe duas mensagens conflitantes diante das quais não há resposta correta possível. O double bind transforma o campo na tradução em campo de abnegados e de aventureiros. Especialmente destes últimos. É fácil encarar a impossibilidade como licença para as barbaridades mais lamentáveis. Mas a impossibilidade é algo que não dispensa a fidelidade. Não se pode retocar, mudar o texto do outro, diz Derrida. Ser fiel na impossibilidade é o supremo sacrifício do tradutor — double bind.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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