Sobre a tradução de textos angulosos

O texto tresanda sentidos, borbulha, provoca descargas de ideias que perturbam a mente de qualquer um tradutor
01/09/2014

O texto tresanda sentidos, borbulha, provoca descargas de ideias que perturbam a mente de qualquer um tradutor. Ele que confessa todas as suas inópias diante de evento tão raro: o texto que transuda, por mais que se tente evitar essa quase hemorragia. Tressua, sempre, e nada para parar essa fluida escoadura. Impossível deter a enxurrada com o coador do tradutor. Quem se atreveria, com tão frágil instrumento?

Animal inquieto o texto, indomável, interminável em suas pulsões. Domá-lo é traduzi-lo, para depois outra vez deixá-lo campear livremente.

Resignado, pode até o tradutor aceitar a derrota de antemão — diante do impossível. Mas há que testar-lhe a têmpera. Submetê-lo aos rigores da dura ascese da tradução. Outro nome para a busca da verdade do texto. A busca da exatidão, sem deixar de antever na semeadura das incertezas sua única chance de vitória.

A angústia da espera não mitiga o amargor da crítica que sempre vem. Vem a tradução como texto postiço, a mendigar legitimidade, ou pelo menos complacência. Texto postiço, escritura que soa artificial — arremedo de literatura, plasmada em fôrma que não a consegue conter.

Mas qual o texto que não se prestaria a esse exercício? Exercício de sobrevivência, quando menos — ou mesmo de altiva perpetuação, quando mais. Só o texto maninho, que não atrai a tradução, que não se deixa transvestir, tão agarrado às próprias fundas raízes. Morre ali, maninho, sozinho, no esquecimento da língua única, do tempo único, da única versão.

Mesmo os textos mais angulosos — que não parecem mesmo caber em fôrma nenhuma que não seja a sua original — precisam enfrentar e vencer esse rito de passagem, a tradução. É como passar no teste — não apenas o teste da persistência, mas o da qualidade. Aquilo que lhe dá o selo mais desejado: traduzido em tantos e tantos idiomas.

Ou talvez anguloso seja o texto da tradução: escritura que, deslocada, não mais coubesse na página que a gerou; que, perdida, não mais quadrasse com seu original. A tradução como desafinação, corrupção do texto harmônico em fragmentos antimusicais. Não mais a sinfonia harmoniosa — alcançada a duras penas no original —, mas a triste e irritante percussão de ruídos malsonantes.

Há que buscar — mesmo diante do original mais anguloso — aquele nervo que pode unir, em fina cosedura, as palavras primeiras do autor com as derivadas da tradução. Nervo que perpassa línguas, eras, terras, tocando como que as mesmas notas no ouvido de cada leitor. O nervo que percorre as frinchas mais estreitas das linhas do original, que nos leva ao sentimento todo do texto. A própria percepção do significado literário.

Há que mariscar e capturar faíscas mesmo no texto mais trevoso. E tantos há que esbanjam escuridão e hermetismo. Nada menos se exige do tradutor. A luz através do luco, da espessa folhagem amazônica.

Há que enxergar através das gelosias que protegem as ideias mais profundas de um texto. Superar a superfície, escorrer por entre as grades, para alcançar o núcleo. Significado profundo ou mera interpretação criativa, mesmo fantasiosa? Miragem, vã caologia? Seja como for, a busca da pura literatura via tradução.

Não há que desmaiar sentidos, como diluindo o vigor do original no texto açucarado de uma tradução bamba. Aí está toda a arte do tradutor: a habilidade aplicada à persistência do viço, mesmo quando o viço já não é. Ou já não é importante. Manter acesa a letra, isso sim, aceso o texto — com o brilho próprio do original. Impossível? Sim, impossível, como toda tradução. Mas nada que nos faça desistir.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho