Sob paz aparente, a violência da tradução

Tradução é geralmente tida como tarefa pacífica, rasa, tranqüila, até modorrenta, tediosa
01/10/2001

Tradução é geralmente tida como tarefa pacífica, rasa, tranqüila, até modorrenta, tediosa. Própria para os de temperamento ameno, os reclusos, quem sabe mesmo as “primas pobres, os tios inválidos ou as cunhadas desocupadas”, ghost-writers de algum escritor, como diria Paulo Rónai.

Nessa forma de encarar a tradução, vige uma espécie de “instinto protetor”. O tradutor é aquele que acalenta o original, quase como a um filho, algo que precise de proteção e manuseio delicado. O texto original é algo frágil, vibra de tênues tensões que devem ser conservadas para a posteridade.

Embalando o texto, com cuidado, pode-se levá-lo em segurança à outra margem. Lá chega são e salvo, imaculado mesmo diante da passagem do tempo, dos deslocamentos, das impurezas próprias do manuseio intensivo e inevitável.

De uma outra ótica, porém, a tradução assume contornos de uma guerra latente. Some o instinto protetor e surge a fricção própria do encontro, nem sempre amigável, de línguas e culturas — choque de civilizações. A língua do tradutor fica exposta, nua e indefesa, aos instintos e impulsos violentos da língua estrangeira — como diria Haroldo de Campos, citando Walter Benjamin, que citava R. Pannwits, nessa teia infinita de citações em que nos enredamos.

Vem a luta. Estruturas sintáticas avançam, explodem trincheiras da língua de chegada, penetram em território inimigo e ali se instalam, semeando desordem e perplexidade. Horror! Puristas, entre atônitos e aterrados, lamentam e amaldiçoam. Palavras, com suas táticas de guerrilha, instalam-se do outro lado da fronteira, às vezes disfarçadas em outra sonoridade ou ortografia. Visões de mundo alienígenas atacam em incursões-relâmpago, por terra e ar.

Invasão irresistível, mas inaceitável. Arma-se a resistência. Vale a criatividade da língua dominada, que, rebelde e dissimulada, aceita o inimigo para degluti-lo e vomitá-lo transformado. É grande o número de baixas. Morrem palavras, lançadas à vala comum do arcaísmo. Outras salvam-se mutiladas, irreconhecíveis. Outras ainda, dementes pelas loucuras da guerra, perdem os sentidos e ganham significados imprevistos.

Em meio ao ruído infernal, vacilam as comunicações e a mensagem se deturpa com facilidade incrível. Nos atos de cifrar e decifrar, muito se perde e outro tanto se ganha. Entende-se o que se quer entender, o que sempre se entendeu. A resistência à mudança recrudesce, mas mesmo os mais heróicos têm lá seus momentos de frouxidão — e cedem.

Vale o calor da rinha. A tradução se impõe não como passivo ato de aceitação, mas como ato de resistência violenta. Ou desesperado e espetacular lance de terrorismo. O desespero diante da impossibilidade aguça a criatividade e indica um caminho novo, impensável e esquisito a princípio. Com o tempo, natural.

Paz na tradução, só ao fim da última linha. Até lá, luta constante, mediada por um rol desconcertante de fontes contraditórias e traiçoeiras. Segurança só sob as asas da autoridade fundada em qualquer consenso — mesmo mínimo, mesmo imposto de cima. Toda mensagem deveria ser deixada em paz, na língua em que foi concebida (Leminski). E ali ficaria, tão pacífica quanto inútil.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho