Sentidos em sombras e concretude

Na tradução é sempre assim: no voo longo e ligeiro dos sentidos, a sombra para um lado, lançando seus enganos, e o concreto para outro
07/12/2015

Na tradução é sempre assim: no voo longo e ligeiro dos sentidos, a sombra para um lado, lançando seus enganos, e o concreto para outro. Em qual dos dois fixar-se? Qual dos dois fixar no novo texto? Se opto pelo primeiro, teria talvez que colorir essas sombras esmaiadas, como se faz com antigas fotos em preto e branco. Ou melhor seria deixar sombras e nuanças no passado, para dedicar-me exclusivamente ao concreto?

Mas seria mesmo preciso escolher? Não haveria forma de captar os dois num só lance, numa só pincelada eternizá-los? Um lance de sorte, inusitado, pautado pelas peculiaridades desse idioma e pelas circunstâncias e convenções desse tempo e lugar.

Não sei se aflautar as rebarbas mais ásperas de sentidos que já não precisam cortar tanto. Modificaria tanto assim o texto, só para torná-lo mais fiel ao original? Num afago lento, sentir de que fibra é feito o texto para vertê-lo em molde novo. Com todo o cuidado para não deixar que o som saia abafado, sem o mesmo timbre e brilho do original.

Seja como for, suavizando ou não, com ou sem afagos, sujeito às vibrações de tantos timbres distintos, opto por demorar o olhar no texto, em lenta leitura própria para quem quer se apropriar de todas as alternativas de significação. Enfeixo todas as opções antes de lançar-me no caminho sem volta. Ou haveria volta para a tradução que já se entranhou na mente do tradutor? Não é fácil dela se abstrair para recomeçar.

A reprodução-tradução tem de ser absolutamente cuidadosa. Não reprodução, mas, melhor dizendo, restauração. O texto tem que se restaurar na tradução, corrompido que foi pelo tempo e pelo desgaste de tantas leituras, pelas persistentes projeções de tantos olhares. Olhares que restam no texto.

Trabalho de artesão, como tantas vezes já tive oportunidade de dizer aqui. Artesão-restaurador, aplicado a tarefa lenta e delicada. Restaurar a plenitude do texto. Recuperar sentidos que, de tão frágeis, se desfazem sob o pesado arrastar do tempo, que os afasta para outros e mais hostis ambientes.

De onde está, de seu promontório, o tradutor descortina o vasto panorama do texto. De sua posição todo-poderosa, embora não onisciente, vislumbra todos os tempos, todas as paisagens do texto. De sua visão diacrônica, extrai o sumo do texto em seu auge. Suga a essência do texto em seu auge no passado.

Mas como distinguir uma voz no meio dessa gritaria estrepitosa? Como individualizar som nítido se estou imerso em pandemônio de ruídos, sufocado por essa cacofonia ensurdecedora? Como pôr o dedo no ponto exato que faz saltar o significado mais cristalino?

Capturar significados antes que o texto, em seu eterno retorno, reflua sobre si mesmo, fechando-se hermético, incompreensível. Tenho de aproveitar a breve abertura que o texto, generoso, me oferece.

Capturar sentidos esvoaçantes, sibilantes, lançando suas cavilosas sombras múltiplas, filhas de muitas luzes. Texto disperso e dissimulado em suas múltiplas faces e disfarces. Como traduzir esse momento?

Eu até tentaria, adoçando a voz, mas não sei se conseguiria afastar de mim a clara impressão de que as palavras me sairiam cheias de espinhos, eriçando sentidos. Espantando leitores, talvez.

É, o tradutor, mais do que qualquer lento leitor, tem de se transportar para o mundo tridimensional sugerido pelo plano texto de partida. Algo que só a tradução da literatura parece permitir. De alguma maneira, sim, capturar o sentido concreto e sua sombra, que dele se afasta lesta e em voo caprichoso, cheio de ariscos vaivéns. Não parece fácil. Se lhe parece, traduza isso.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho