Sem contexto, quem me compreenderá?

“Bêbado, quem me compreenderá?” Assim termina o Catatau, de Leminski. Solta, a frase parece indicar que bêbado é quem pergunta, o mesmo que questiona quem o compreenderá
01/07/2001

“Bêbado, quem me compreenderá?” Assim termina o Catatau, de Leminski. Solta, a frase parece indicar que bêbado é quem pergunta, o mesmo que questiona quem o compreenderá. Pelo contexto, bêbado é o polaco que, depois da longa espera de Cartesius, chega imprestável: não conseguiria explicar nada a ninguém. Significado é dádiva do contexto, argumento que quero esmiuçar melhor abaixo.

A importância do contexto na tradução é diminuída toda vez que se fala em tradução literal: operação que, prescindindo de contextos, intenta trazer o texto original à tona num passe de mágica. Basta conhecer a chave: a relação de correspondência entre palavras de línguas distintas.

A inserção da variável “contexto” na operação tradutória é um complicador e tanto. Tira essa operação do campo meramente lingüístico e a lança num remoinho errático de elementos mais ou menos elusivos, mais ou menos imponderáveis, difíceis de determinar: o campo do social, da interação de pessoas, tempos e espaços distintos.

Nietzsche dizia que o que menos se presta à tradução, numa língua, é o “tempo do seu estilo”. É uma variável complexa, composta de elementos dos falantes da língua, o metabolismo mesmo de um povo que, avançando no tempo, deixa um rastro e um ranço de cultura: um caldo de contexto.

Mas isso que menos se presta à tradução é o que de fato requer tradução. Quem quer traduzir palavras? Esse certamente é o primeiro alvo do crítico “literal”, que exige, paradoxalmente, que na operação literal não se despegue o olho do contexto. Então uma tradução literal que não pode prescindir do contexto?

Na tradução, traduz-se não um texto apenas, mas toda uma língua, um povo, uma tradição. Tudo contextualizado e fixado, a cada tempo e lugar, pela comunidade intelectual que tem poder e habilidade para tal. É um jogo social e, como tal, político: na língua chora menos quem pode mais. Quem define sentidos, impõe grafias e codifica sintaxes?

Nesse jogo de disputa pelo significado, não há tradução que resista incólume à passagem do tempo. Os clássicos, diz-se, merecem ser traduzidos e retraduzidos a cada nova geração. Não há leitura definitiva, mas o contexto é a pedra de toque de um tempo e lugar — nele, a medida de uma tradução: boa ou ruim, comportada ou ousada, disparatada ou até inspirada. Dominar o contexto é sintonizar com os critérios vencedores de uma geração. Melhor, adivinhar o contexto da geração seguinte é para os gênios da raça.

A proliferação desenfreada de sentidos desnorteia o tradutor mais atento. Na massa incomensurável de dados e informações, o contexto é baliza e bússola. Como na ciência a teoria define o conjunto de observações possíveis, na tradução o contexto determina uma categoria de significados: o conjunto dos possíveis. Como dizer que isso é relativismo “absoluto”?

Relativismo certamente há na tradução. Só se traduz relativamente a um contexto dado, estudado e apreendido. Descontextualizado, o texto é incompreensível ou mal compreendido. Solta a frase, arrancada ao texto a palavra, alheio ao ambiente o pensamento — bêbados ou não, quem nos compreenderá?

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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