Reminiscências das leituras de Machado e Azevedo

Reboa fortemente — excesso dos excessos — a cristalinidade do original. Nada mais límpido e imediatamente identificável à mente sã
01/02/2014

Reboa fortemente — excesso dos excessos — a cristalinidade do original. Nada mais límpido e imediatamente identificável à mente sã. Toda a clareza dos sentidos, presente no texto. Nem tanto na tradução, onde o cristal parece quebrar-se, ao menos opacificar-se.

O significado emergindo fácil à flor da página, no original. Na tradução, a submersão — talvez até subversão — de todo sentido.

Mas na tradução, aproar rumo à unilateralidade, mesmo que temporária. Reduzir antes, para depois, outra vez, permitir a exuberância das demasias. E, no entanto, a sensação de redução é pungente e imperdoável…

Míngua o brilho no texto lateral — traduzido —, brilho que luzia fulgente e natural na letra do original.

Não sei se só na tradução ou também no original, o significado adejante não se deixa fixar. Mais na tradução. No original, a certeza sempre presente — quase gritando aos olhos do leitor atento.

Na tradução, muitas vezes a fixação do esdrúxulo. Merecedor de censura e do selo do ridículo. A raiva e o riso mesclando-se para condenar.

Afia o tradutor os olhos e demais sentidos, na ânsia de perseguir tantas encruzilhadas. Muitas dão em becos sem saída. Muitas em outras encruzilhadas.

Sentidos roçagam pelo texto, à flor da letra, para iludir aquele que os quer cristalizar. Roçagam soltos, mas ruidosos, à espera da poita que os faça fundear.

Sentidos coam por entre as linhas, pelos espaços entre as letras, palavras, parágrafos. Mergulham nesse tecido poroso do entendimento do tradutor.

Não basta apenas rasar sobre a côdea. Há que perfurá-la para provar os sabores vários da polpa. Depois decidir. Mas não há guia na decisão.

Não há apenas uma calhe, mas várias que conduzem ao sentido mais profundo, do qual deriva a miríade de possibilidades — aquilo que chamamos texto literário. No trilhar essas calhes, a virtude, a habilidade do tradutor.

Nesse trilhar, liba-se o hausto que pode implicar o sucesso da tradução. Beba-se em sorvos longos e profundos.

Nesse trilhar, saber identificar os laivos que são a própria essência do literário. A arte nesses veios, que se transfunde do original à tradução.

Todo desar será castigado. Manter a linha, acima de tudo — lema do bom tradutor.

Perceber o rendilhado caprichoso em que se esparge a substância literária. Persegui-lo até as últimas conseqüências, até enredar-se — mesmo perder-se — nas tramas do texto. Capturá-lo ou render-se.

Sem exagerar nem atenuar a verdade do original. Seguir pelo caminho do meio, o tradutor.

Evitar a entuviada do texto amortecido, macilento, baço, sem a luz e o viço que lhe deu originalmente a primeira criação.

Contornar o pejo do texto excessivo, exagerado num brilho que nem no original parece distinguir-se.

Borrifar, sim, aqui e ali, estrategicamente, as necessárias compensações de tantas perdas inevitáveis. Mas sem cair no tremedal da proliferação indigesta de efeitos fátuos (como cotões sobre o tecido textual).

Dar um basta na azáfama desembestada dos sentidos — inferno de confrangimentos. Marcar onde cessa o original e começa a tradução.

Traduzir como quem trina um belo texto, haurindo disso todo o goivo possível. Mas também tressuar traduzindo; traduzir mais nesta noite, neste momento, que em toda a vida: intensidade.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho