A tradução da Bíblia — livro composto por textos de variadas línguas, épocas e lugares — é sempre um esforço hercúleo e coletivo. Mesmo traduções identificadas a um nome — como São Jerônimo, Lutero, John Wycliffe ou João Ferreira de Almeida — foram feitas em colaboração com outros estudiosos e/ou se valeram de traduções anteriores.
A Bíblia de Jerusalém — tida como uma das traduções mais criteriosas das Escrituras — é também resultado de um desses admiráveis esforços conjuntos, durante longo período de doze anos. É dela que pretendo falar nesta coluna, apontando alguns elementos relevantes sobre o trabalho de tradução.
A Bíblia de Jerusalém foi resultado do empenho de exegetas católicos e protestantes, além de revisores literários. O fato de haver uma “revisão literária”, que supõe cuidado com a consistência e a elegância da linguagem, nos faz lembrar que a Bíblia — livro de extração oriental — é uma das matrizes mais importantes da literatura ocidental e, como tal, fonte de inúmeras citações e de forte inspiração para os mais diversos autores.
Um dos textos ancilares da Bíblia de Jerusalém (Observações) trata especificamente da tradução. Lemos ali as diferentes estratégias utilizadas para a consecução do trabalho. Aponta-se que a versão foi feita diretamente das línguas originais (hebraico, aramaico e grego), com recurso ocasional a fontes em outras línguas (siríaca e latina).
Procurou-se ancorar o trabalho na linhagem secular de originais e traduções das Escrituras, mas sem desconsiderar alternativas, em casos específicos: “Quando a tradição oferece diversas formas de texto, foi escolhida a leitura mais segura, não sem indicar em nota a ou as variantes que têm importância ou conservam alguma probabilidade”. A qualificação de “leitura mais segura” pode parecer questionável, em razão da imprecisão da frase, embora funcione como medida de autoridade exegética. A indicação das variantes é um dos elementos importantes dessa versão da Bíblia, oferecendo ao leitor amplo panorama de interpretações e, ao mesmo tempo, apontando as incertezas que sombreiam determinados trechos.
Outro aspecto interessante da tradução é o afinco por “reduzir a diversidade das traduções [de] termos ou expressões idênticas no original”. Trata-se de uma questão das mais complexas numa tradução, pois é natural que uma palavra ou expressão encontrem diversas possibilidades de tradução em outra língua; e também é naturalmente difícil, para o tradutor, manter coerência na versão de um mesmo termo do original ao longo de toda a reescritura.
Essa redução só foi de fato alcançada, segundo os editores, no tocante a termos técnicos “cujo sentido é unívoco”. Nos demais casos, a contenção foi relativizada, em função de diversos fatores, como a amplidão semântica de determinados termos e expressões e as injunções dos distintos contextos.
A propósito dessas dificuldades de redução, os editores apresentam pelo menos dois argumentos interessantes. O primeiro trata da questão semântica em si: “Uma tradução servil e por demais literal pode às vezes não reproduzir senão imperfeitamente o sentido real de uma frase ou expressão”. O segundo, do cruzamento entre questões semânticas e formais: “Quando necessário, preferiu-se a fidelidade ao texto a uma qualidade literária que não seria a do original”. Interessante notar a tensão entre fidelidade e servilismo e, de modo geral, a preocupação de integrar elegância e correção semântica — tarefa, aliás, nada fácil em qualquer tradução.
Vale também apontar o cuidado com a transcrição de nomes próprios e de pesos e medidas. Por último, e sobretudo, chamam atenção o número, a complexidade e a riqueza das notas, que fazem dessa tradução um texto digno de leitura atenta e demorada.