A tradução é a prova real da compreensão de um texto. Exige esforço tão grande de imersão e concentração que não admite que se lhe compare a mera leitura. Aquela leitura de uma só vez, a passada d’olhos pouco estudada, que pouco compreende. Que não grava, que sequer entende ou não vislumbra ao menos algumas das múltiplas possibilidades que se abrem num texto.
“Provar que compreende, só traduzindo”, dizia Leminski (ou Cartesius?) em Catatau. A tradução como prova de que o texto foi vencido, em sua extensão, com todas as suas dificuldades. Foi compreendido, mesmo que a compreensão seja sempre parcial e mediada por fatores que nos escorregam das mãos e se embrenham em cantos escuros da mente.
O primeiro sinal de uma má tradução não é apenas um certo estranhamento, mas principalmente a dificuldade de compreensão. Há uma dupla incompreensão. O leitor não compreende. O tradutor não compreendeu, e conseqüentemente não soube reescrever como poderia quem mergulhasse, como se deve, no estudo do texto. Compreensão exige pesquisa, exige paciência e noites mal dormidas, dias mal vividos, textos bem escrutados.
O que vai além da compreensão é o estilo, as características, digamos, estruturais do texto de determinado autor. Aí se vai um passo adiante. Deixamos o terreno da tradução apenas correta (com boa compreensão do texto, sempre) para subir um degrau importante, rumo a um texto singular, algo mais próximo de uma obra de arte.
“Se o tradutor tentar recriar na língua alvo o estilo”, analisa a estudiosa Carmen Rosa Caldas-Coulthard, “terá feito um bom trabalho”. Tradução com “estilo” é outro nível de trabalho, que merece ser apreciado com vagar e deleite. Merece ser lida com calma e atenção ao detalhe. Quase, assim, como ler um legítimo original.
Estilo não é algo fácil de definir. À guisa de ensaio: conjunto de características textuais que singularizam um texto ou um autor. A recriação do estilo, em outra língua, com outra estrutura sintática, com outra raiz lexical e mesmo outros referentes, não é tarefa das mais simples. Será sempre trabalho de resultado duvidoso e sujeito mais a críticas do que a elogios. Nem por isso deixa de valer a pena. Tentar, como diria Caldas-Coulthard. Há mérito no tentar, mesmo que não se alcance (ou não se lhe reconheça) êxito.
Outra questão se impõe e mereceria ser estudada. Haveria o estilo do tradutor, um conjunto de características que o tradutor imponha ao original ao vertê-lo em outra língua? E como conjugar — dificuldade das dificuldades — dois estilos em um só texto? Ou melhor (e mais simples) não seria privilegiar um deles (o do tradutor) em detrimento do outro?
Tradutor com estilo é tradutor com personalidade, e isso nem sempre é algo que se admire. Se encara como excessiva ousadia, indevida intromissão em texto de outrem. Usurpação de lugar que não lhe cabe. E é mesmo aí que se afirma a personalidade, algo difícil de encontrar.
Compreender, porém, meramente compreender, já é boa base para a tradução. Não que seja suficiente, mas é sem dúvida necessário. E não é algo tão simples quanto possa parecer. Traduzir, sim, e bem, pode-se considerar prova suficiente de compreensão.