Por uma ótica múltipla na tradução

O desenho em perspectiva, aquele em que os objetos aparecem num plano vertical, perpendicular ao olhar do desenhista, é algo relativamente recente na história da humanidade
01/08/2001

O desenho em perspectiva, aquele em que os objetos aparecem num plano vertical, perpendicular ao olhar do desenhista, é algo relativamente recente na história da humanidade. Teria nascido no século 15 a Itália renascentista, graças ao trabalho de gente como Filippo Brunelleschi e Pietro di Borgo San Sepolcro. A característica principal da perspectiva é apresentar os objetivos a partir de um ponto de vista único —o do desenhista ou pintor —, e a conseqüência é o ponto de fuga, o local onde os objetos somem de vista.

Antes da renascença, os desenhos e pinturas tinham pontos de vista múltiplos, ou seja, os artistas retratavam seus assuntos a partir de diferentes ângulos. Era como se, num mesmo desenho ou pintura, coexistissem diferentes planos, diferentes pontos de vista, resultando em “distorções” das formas e tamanhos.

Essa evolução do desenho multiperspectivo para o uniperspectivo provoca algumas reflexões no campo da tradução. Na visão mais popular do ofício do tradutor, ou mesmo em teorias tradutórias tradicionais, vige a perspectiva unipolar. É um raciocínio unívoco, que estabelece a existência de uma só tradução “certa” para cada texto dado. Toda diferença em relação à tradução “certa” (seja lá o que isso signifique) é considerada desviante, passível de condenação.

A diferença entre o desenho e a tradução parece estar no fato de, na tradução, não ter havido um tempo (nem mesmo mítico) em que se permitia o uso de perspectivas múltiplas, vários planos coexistentes num mesmo texto. Na tradução, a guinada para além da perspectiva única veio apenas no século 20, década de 60 em diante, com o surgimento dos estudos pós-estruturalistas na literatura.

Ainda assim, a mera menção ao uso de perspectivas múltiplas na tradução é recebida com saraivadas de críticas, algumas até sensatas e ponderadas, outras absolutamente destrambelhadas. O fulcro da questão estaria na confusão de subjetividade única com objetividade. A confusão das duas coisas leva a crenças cegas, a cultos mesmo, da objetividade. Crê-se numa tradução objetiva, quando se deveria falar numa tradução uni-subjetiva. Das múltiplas subjetividades possíveis, dos diversos pontos de vista ou perspectivas, escolhe-se uma. Essa é igualada ao ponto de vista “objetivo”, acima de qualquer subjetividade.

À medida que nos afastamos do século 20, vale a pena analisar com mais vagar esse fenômeno. Uma única subjetividade guindada à categoria de objetividade (que, por definição, é singular) trouxe a esperança e a decepção. Penso no sonho da máquina de traduzir, cuja teoria se baseava na crença da objetividade na leitura de um texto, na crença do uso de uma perspectiva única e infalível.

Talvez valha a pena ver o século 20 como o momento da história em que se concebeu uma visão multiperspectiva da tradução. Um processo inverso ao do desenho, em que a “invenção” da perspectiva representou um avanço. Na tradução, a derrubada da perspectiva (única) é o avanço. Traduzir é olhar um texto de vários ângulos, de múltiplos pontos de vista, de perspectivas cambiantes. Cada vez que leio um texto, descubro nele coisas novas. Em cada leitura, vejo uma mesma coisa em suas várias possibilidades.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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