“Não lemos mais o autor, cujo estilo é manipulado pelo tradutor para atender aos cânones da divulgação.” Frase como essa, embora relativamente curta, é instigante estímulo a uma reflexão sobre tradução. Pincei-a de um artigo do poeta e tradutor Ivo Barroso sobre o livro Sob a invocação de São Jerônimo, de Valery Larbaud, traduzido para o português por Joana Angélica d’Ávila Melo (Mais!, Folha de S.Paulo, 4/11/2001).
Tirar assim uma frase de seu contexto é sempre arriscado, mas corro o risco pelo gosto que me trazem certas idéias que se podem extrair dali. Curioso isso de não lermos mais o autor. Tendo a enxergar um quê de positivo nisso. Me dá a idéia de que o tradutor assume mais responsabilidades e se insere sem medo no texto, fazendo-se notar. Mas o tom da frase é negativo. Barroso comenta que os tradutores de hoje, diferentemente, talvez, do que se fazia noutros tempos, desfazem as frágeis harmonias do original para tornar os textos mais palatáveis, vendáveis, mais fáceis e rasteiros, abusando de palavras “modernas” e até vulgares.
Analisa também Barroso que certos tradutores hoje são vitimados por um processo de “massificante profissionalização da categoria”. Esse processo empurraria para um espaço cada vez mais restrito os que vêem a tradução como “exercício de amor”, como “paixão”, até como “co-autoria”.
Rico o texto de Ivo Barroso para quem gosta de mergulhar nas inquietantes alternativas de algo que ainda não se sabe bem se se deve chamar “teoria de tradução”. Concordo nalguns pontos. Discordo noutros, daí talvez a maior riqueza.
Vejo com bons olhos a profissionalização da categoria, mas ainda a considero incipiente, longe de massificante. Profissionalização pode gerar qualidade, se aumenta a renda e o incentivo ao trabalho bem-feito. “Exercício de amor” é idéia bela, romântica, nem sempre viável. Mas sempre vale como ideal.
Co-autoria, sim, parece bom. Dá a idéia de que o tradutor está ali para trabalhar como autor, com base no texto do autor, reservando para si espaço de criação. Criação é negócio perigoso. Se o tradutor cria, e não creio poder fazer outra coisa, abre o flanco para críticas as mais variadas. Pode ser até acusado de criar um outro texto, de afastar o leitor do autor original. “Você, manipulador, não me deixa ler o autor!”
Sinto certa nostalgia nisso, nessa vontade de querer ler o autor, quando ele já não está mais tão presente. Querendo devanear, diria que é novo capítulo de um hábito antigo — buscar resgatar um tempo que nunca houve. A Idade de Ouro da tradução, quando tudo era arte e paixão.
Os tempos hoje parecem mesmo mais ligeiros. Querem, queremos, tudo mais rápido, mais imediato. Em tempo real. Também na tradução, o tempo é curto. Mas mesmo com todo o tempo do mundo, acho difícil que o tradutor resgate, do original, o texto do autor.
Não ler o autor é tudo o que podemos fazer, talvez. Só lemos por meio de um tradutor, mesmo que o sejamos nós mesmos. A imediatez, que buscam tanto os nostálgicos quanto o moderno mercado de traduções, está lá atrás num passado irrecuperável — ou lá adiante num futuro inalcançável. Fico com este presente mediatizado e midiático, em que ler implica traduzir e, em maior ou menor grau, manipular.