Pessoa teórico-tradutor

As ideias (algumas polêmicas) de Fernando Pessoa sobre o ofício da tradução
Ilustração: Thiago Lucas
01/05/2024

Volto a tratar de Fernando Pessoa, agora para explorar algumas de suas visões sobre a tradução. Ele mesmo tradutor, Pessoa também elaborou diversas reflexões sobre o ofício, ainda que não de maneira sistemática. O professor e tradutor português Carlos Castilho Pais, em breve resenha esquemática ou antologia mínima, reuniu algumas dessas reflexões. O texto oferece um interessante retrato de Pessoa tradutor, que vou esboçar abaixo.

Castilho Pais inicia sua antologia com uma autodefinição importante do próprio Pessoa, que se considerava tradutor por profissão, mais até que poeta e escritor — embora essas fossem as ocupações que realmente o moviam.

Tradutor profissional, Pessoa naturalmente se preocupou em construir e aplicar uma estratégia de tradução que lhe soasse correta e eficiente. O parâmetro que elegeu não poderia ser mais elevado, conforme se lê em carta endereçada a João de Castro Osório: “Quer para as traduções de Shakespeare quer para estas (poemas de Edgar Poe, Browning, etc.), é o mesmo o meu critério de tradutor — transpor para português tanto o espírito, como a essência da letra, da obra”.

Qual seria o real resultado dessa estratégia? O próprio Pessoa nos dá um sinal, ainda que sutil e pontual, mas que pode e deve ser levado em conta. Em correspondência ao magnata americano Bernarr Macfadden, o poeta qualifica a autotradução que fizera de um artigo seu como “algo formal, ou desajeitada, numa ou noutra passagem”. E justifica: “é porque me esforcei sobretudo, ao traduzir, por me manter muito próximo do sentido exato e do significado do meu original”. Resumo: a tradução que busca preservar o espírito e a letra pode, ao mesmo tempo, provocar certo estranhamento — algo natural em se tratando de tradução — em razão da necessidade de forçar soluções lexicais e até estruturas gramaticais.

Pessoa também se debruça sobre a tradução da poesia, claro. E, nessa seara, que era mais propriamente sua, elabora uma espécie de regra geral para os que enfrentam o desafio. Previamente, o poeta português ensaia uma definição de poema: “uma impressão intelectualizada, ou uma ideia convertida em emoção, comunicada a outros por meio de um ritmo. Este ritmo é duplo num só, como os aspectos côncavo e convexo do mesmo arco: é constituído por um ritmo verbal ou musical e por um ritmo visual ou de imagem que lhe corresponde internamente”.

São várias as definições possíveis do que é um poema. Pessoa nos legou a sua. É uma concepção que, conjugando emoção, ritmo e imagem, revela uma estrutura de difícil transposição.

Com base nessa definição, Pessoa aponta que a tradução de poesia deveria “conformar-se absolutamente (1) à ideia ou emoção que o constitui, (2) ao ritmo verbal em que esta ideia ou emoção é expressa”. Quanto à segunda parte da regra, o poeta acrescenta que a tradução deve também “conformar-se em relação ao ritmo interno ou visual, aderindo às próprias imagens quando possa, mas aderindo sempre ao tipo de imagem”. Como artista, Pessoa naturalmente atribui especial importância à versão de elementos abstratos e subjetivos — o que, também naturalmente, faz da tradução algo nada trivial.

Já seria dificuldade suficiente para o tradutor. Mas o poeta português vai além, propondo controverso componente de aperfeiçoamento. Indaga ele se não seria lícito, em nome da qualidade artística do produto final, melhorar — “pelo corte, substituição ou adição” — poema de autor famoso de outra era.

Opinião forte e polêmica; e certamente grande tentação a assombrar tradutores de todas as eras. Um exemplo? “A Ode à imortalidade, de Wordsworth, é um grandioso poema, mas está longe de ser perfeito. Poderia ser vantajosamente remanuseado”. Alguém se habilita?

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho