Budapeste. Não a cidade, mas o romance de Chico Buarque. E o filme homônimo, de Walter Carvalho. Depois, novamente, a cidade. Cidade partida em duas; duas partes unidas pela ponte. Penso no texto e sua tradução. Penso em sua tradução, o filme. Buda e Peste. O escritor anônimo de Chico Buarque. A compulsão por aprender um novo idioma, um novo texto. Apreendê-lo até torná-lo totalmente seu, sem que ninguém possa dizer que não é seu desde o início. Nem mesmo ela, húngara, de língua materna húngara.
Assim é Budapeste, a cidade. Dividida pelo Danúbio e pela história, unida pela política. Entre Buda e Peste, a ponte. A tradução. A vontade de conquista, de chegar ao outro lado do rio, de tornar sua a outra margem. A tradução como instrumento de invasão.
Assim é Budapeste, o romance. E o filme, sua tradução. O escritor anônimo, gênio enrustido, operário das letras explorado. A cidade estrangeira como refúgio. Uma cidade que honra o autor oculto. O homem sem rosto. A estátua de capuz. O tradutor.
O autor oculto sonha em mudar de vida. Muda de vida. Muda de mulher. Muda de cidade. De uma cidade partida a outra. Muda de país. Muda de pátria. Muda de língua.
A transição é longa, mas ele é tenaz. O amor pelas letras e pela nova mulher o conduz. A nova cidade é fria e dividida. De Budapeste vê o rio. Horas a olhar o rio, de uma margem. Da outra margem. De cima da ponte. O rio é também a língua, que passa, corre, atravessa, divide. Uma língua em cada margem. O autor oculto quer dominar as duas.
E as domina. Faz a transição completa. Transforma-se em outro para escrever em outra língua. Muda tudo. Escreve um novo texto. Já fora sucesso no Rio, agora o mesmo fará em Budapeste. Como escritor oculto, de novo. Não lê seu nome na capa. Mas sente o doce sabor do sucesso, que lhe sabe efêmero como antes.
É como o tradutor, que tampouco vê seu nome na capa. Tampouco vê-se reconhecido pelo texto que, afinal, ele mesmo escreveu. Palavra por palavra. Desvendando palavra a palavra a língua estrangeira. Também fez toda a transição. Também atravessou a ponte e foi de Buda a Peste, do Rio a Budapeste. Trilhou todo o percurso. Chegou à outra margem. Construiu com o próprio suor a ponte que leva o leitor à outra margem. A ponte necessária, de José Paulo Paes.
É isso que impressiona em Budapeste. A ponte que une o que o rio separa. A vida toda dedicada a escrever o texto que levará a assinatura do outro, ainda que o outro já nem esteja para assiná-lo. Já nem queira mais assiná-lo e sequer o reconheça como seu. Pois o texto já é outro, na tradução.
É isso que impressiona em Budapeste. O esforço sobre-humano de quem deixa a própria língua para trás e começa a até sonhar na língua da outra. E quem poderia culpá-lo? Basta ler o livro, basta ver o filme. Ou fazer um passeio em Budapeste.
É isso, no fundo, que impressiona quem vê Budapeste. A metamorfose de um escritor que se transforma, ele mesmo, em língua estrangeira. Para nunca mais ser estrangeiro. Ainda que o sotaque de uma região distante lhe pregue uma peça.
No fim, já nem lembro mais se li mesmo o livro ou se só vi o filme. Em Budapeste, com certeza, jamais estive. Na memória ficou o filme e alguns textos esparsos. Na memória se me apagou o texto original. Só me ficou sua tradução, o filme; e o sonho de quem queria transportar-se para outra língua. E provar-se, para si mesmo, para a nova cidade, para a nova língua; provar que nela pode ser tão oculto como o fora em sua própria.