Paralipômenos (2)

Para Schopenhauer, “uma biblioteca de traduções é como uma galeria de arte que só expõe cópias”
Arthur Schopenhauer, autor de “A arte de escrever”
01/06/2022

Os escritos de Arthur Schopenhauer sobre a linguagem são uma fonte inesgotável de reflexões sobre a tradução. Uma vez mais retorno, portanto, a A arte de escrever, que reúne textos traduzidos do alemão por Pedro Süssekind oriundos da obra Parerga und Paralipomena.

Como pudemos ver nas duas colunas anteriores, a opinião do metafísico alemão sobre a tradução é bastante dura, em especial quando o original é proveniente dos grandes autores romanos e atenienses. Schopenhauer critica a publicação de traduções de clássicos das línguas antigas (particularmente, latim e grego) para as modernas línguas europeias, inclusive o alemão. Considera a tradução, na década de 1830 a 1840, do Corpus juris (base da jurisprudência latina, do século 6) como “um símbolo inegável da penetração da ignorância na base de toda a erudição, isto é, na língua latina, portanto um símbolo da barbárie”.

Em outra passagem, mas na mesma linha, Schopenhauer reitera sua crítica à política editorial de sua época (meados do século 19), desancando tradutores, editores e a própria função das línguas europeias como meio de preservação da alta cultura: “E as versões [traduções de obras eruditas para uma língua europeia qualquer] feitas por aprendizes literários, às quais os editores dão preferência, são um péssimo substituto para uma língua erudita geral [que deveria ser o latim, na visão do filósofo alemão]”.

Continuando em sua defesa do latim como meio de expressão da erudição, Schopenhauer questiona “…como seria se cada um deles [importantes autores da Idade Média que escreviam em latim] tivesse escrito na língua de seu país, seguindo o estágio em que ela se encontrava na sua época? Seria impossível para mim entender sequer a metade dos seus textos, e um contato espiritual com tais autores se tornaria impossível. Eu os veria como silhuetas no horizonte distante, ou então pelo telescópio de uma tradução”. Temos aqui mais uma metáfora que nos legou o filósofo alemão, ao qualificar a tradução como processo que aproxima o leitor do original, ainda que o faça por uma lente que, inevitavelmente, perturba a imagem primária.

Ao tratar da tradução em geral, Schopenhauer nos apresenta mais uma metáfora, naturalmente pessimista como todas as outras, deste e de quaisquer outros autores: “Uma biblioteca de traduções é como uma galeria de arte que só expõe cópias”. O sentido negativo é inegável, mas talvez a interpretação não precise ser tão desfavorável, considerando que há “cópias” de grande qualidade… tanto na literatura (excelentes traduções) quanto nas artes plásticas.

Ainda no campo da apreciação geral da tradução, o metafísico europeu analisa a correspondência entre os elementos lexicais de duas línguas quaisquer, apontando para aquilo que hoje temos como óbvio: “Não se encontra, para cada palavra de uma língua, um equivalente exato em todas as outras línguas. Portanto, nem todos os conceitos designados pelas palavras de uma língua são exatamente os mesmos que as palavras das outras expressam, por mais que essa identidade se verifique na maior parte dos casos, às vezes de um modo notavelmente preciso[…] Mas com frequência se trata apenas de conceitos semelhantes e aparentados, que podem ser diferenciados por alguma modificação de sentido”.

Queria finalizar com uma reflexão de Schopenhauer que remete ao cerne da atividade tradutória, embora certamente não tenha sido originalmente concebida com essa intenção. “Não é possível alimentar os outros com restos não digeridos, mas só com o leite que se formou a partir do próprio sangue.” Não parece haver melhor advertência para o tradutor, qualquer que seja o original.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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