Paráfrase. Essa bem poderia ser uma boa definição para a palavra “tradução”. Toda tradução tem muito de paráfrase, de explicação, de desenvolvimento a partir de um texto-base. Esforço para tornar o texto, originalmente obscuro, inteligível para o leitor-alvo. O tradutor, em geral, sofre de compulsão por explicar — há a preocupação de suprir lacunas que se abrem na passagem de um meio lingüístico a outro, ou de uma cultura a outra.
O tradutor sofre da necessidade de explicar-se, forma de expiar a culpa atávica que o sujeita. Explica-se para o leitor, com paráfrases — às vezes mais longas que o recomendável —, com notas de rodapé, com introduções e posfácios, com orelhas, com o que estiver à mão. Explica-se para os críticos, especialmente em caso de tradução da “grande obra literária” — protegida dos críticos, sempre objeto dos maiores cuidados, cuidada que é como obra-de-arte. É como deve ser. Explica-se para si mesmo, no escuro da sala iluminada apenas pela luz tênue da tela: era preciso explicar, parafrasear, arredondar o texto, deixá-lo apetecível, degustável — enfim, consumível.
Paráfrase pode ser sinônimo de má tradução. Texto que se enrola sobre si mesmo, descendo em espiral rumo aos fundos de gaveta das editoras (ou, em casos de maior obstinação, rumo às prateleiras mais baixas das livrarias, primeiro, e, por fim, dos cantos sombrios dos sebos). Texto que não se sustenta sem o original, que parece implorar a presença deste. Tradução, enfim, insegura, irresoluta — à qual falta a força dos textos bem construídos, que se sustentam por si, que podem ser lidos independentemente daqueles que lhes deram origem.
É esta a medida decisiva de uma tradução: poder ser lido como novo original. Texto que estabelece verdadeiro padrão para toda uma geração. A tradução definitiva, enfim, pelo menos para determinada época, para determinada língua. Tradução que prescinde da paráfrase como muleta, mas que a usa, sim, se necessário, como recurso estilístico ou como solução tópica. Paráfrase que não ofusca o paralelismo (ou mesmo a concisão relativa) do texto em face do original. Dizer tanto (ou mais) com o mesmo.
A concisão — por oposição à paráfrase — pode ser outra marca do texto bem traduzido. Evitar traduzir com duas palavras o que se pode fazer com uma. Extrair sentidos novos de palavras velhas. Forçar a relação etimológica para produzir efeitos estilísticos que, quem sabe, o bom leitor (ou eventual crítico) saberá identificar, e mesmo reconhecer. Tensionar a estrutura sintática da língua-alvo para nela recriar toda a desenvoltura, toda a criatividade do original. Tudo isso sem provocar a sensação de estranhamento repulsivo. Pelo contrário: incitando a surpresa agradável, o deleite na leitura, pela novidade, pela virtuosa violação de regras que projeta a evolução da língua.
Para quebrar a regra, é preciso primeiro conhecê-la. Não se trata de meramente decalcar palavras e estruturas do original, a esmo, mas de cinzelar, na massa informe da tradução literal, um texto que saiba a invenção — com estilo adequado à estética corrente (e, se possível, com olhar no horizonte, à estética futura).
O tradutor, mais que qualquer artista, precisa ter um quê de antena da raça. Precisa, de certa forma, prever tendências, adivinhar para onde caminha a língua, sintonizar-se com as freqüências mais elevadas de sua cultura, de seu meio, de seu instrumento de expressão. Precisa, talvez, apostar mais na concisão que na paráfrase, apontando o surgimento de estruturas novas, de neologismos. Explicar menos e sugerir mais.