Palavra escrita e traduzida

Acima de tudo, como diria Fernando Pessoa, a palavra escrita “escolhe quem a entenda, e não se subordina a quem a escolhe”
O poeta Fernando Pessoa
01/05/2020

Fernando Pessoa tem uma obra interessante sobre a língua portuguesa e a linguagem. São textos esparsos do grande poeta, recolhidos no livro A língua portuguesa, da Companhia das Letras (1999). Entre as tantas reflexões de Pessoa sobre a língua, destaco aqui a diferenciação que faz entre a palavra falada e a palavra escrita.

Segundo Pessoa, a palavra falada é imediata, local e geral; enquanto a palavra escrita, mediata, longínqua e particular. A palavra falada é um fenômeno social, enquanto a palavra escrita é um fenômeno cultural. A palavra falada exige que sejamos do nosso tempo e lugar, sob pena da incompreensão dos interlocutores; enquanto a palavra escrita não se subordina às veleidades da mera compreensão imediata.

De fato, a palavra falada, especialmente quando em inter-relações pessoais diretas, ao vivo, é acompanhada de uma série de elementos comunicativos e carregados de significados que estão ausentes na palavra escrita. Nesta, até tentamos emular alguns desses elementos, por meio de sinais gráficos (aspas, negrito, itálico, pontos de exclamação, reticências, etc.); mas o resultado será sempre inferior àquele que se obtém, com muito menos esforço, mediante a palavra falada.

Podemos transpor, em certa medida, a comparação entre língua falada e língua escrita ao paralelo entre original e tradução. O original, análogo à língua falada, é o texto primeiro, de hierarquia maior e maior autoridade. Seria o texto de relação mais imediata com o leitor, aquele que transmite a mensagem verdadeira, impoluta e transcendente. A tradução, texto mediador, é aquela que transporta o valor do original, sempre com alguma perda e corrupção, ao leitor que já não tem acesso à escritura primeira. Análoga à língua escrita, a tradução é o texto que se esforça — sem jamais alcançar êxito absoluto — para transmitir todas as nuanças de um original cujo significado inteiro mergulha cada vez mais fundo no passado e na escuridão.

O original é um texto autoexplicativo. Nele tudo está de maneira completa, nada precisa ser esclarecido nem explanado. É a escritura soberana, cujo significado o leitor crê piamente estar inteiro inscrito em suas páginas. Se não compreende tudo, a culpa é toda dele, leitor.

A tradução é um texto que precisa se explicar diante do leitor. Vemos esse esforço nas paráfrases, nas notas de rodapé, nos prólogos, nos posfácios, etc. É um texto que precisa também se justificar diante do próprio original e de seu autor.

Por outro lado, há um outro paralelo que se pode fazer entre original e tradução, no qual esta aparece com claras vantagens. O original, em razão de sua relação imediata com o leitor, precisa de alguma forma ser mais direto, claro e sedutor; precisa, inclusive, em alguns casos, carregar em si certo sentido comercial. O original tem um quê de urgência de expressão e comunicação, assim como a palavra falada. O original tem a premência inata das coisas que têm vida curta.

Já a tradução, assim como a palavra escrita, em razão de seu caráter mediador, dá-se ao luxo de poder demorar-se. Demora-se tanto na construção de si mesma — tempo que leva para começar e ser feita, tempo que leva para elaborar-se por inteiro, incluindo todo o burilar da expressão, que pode tomar em conta pesado material de pesquisa — quanto na projeção que pode alcançar ao longo do tempo e do espaço, em suas várias versões.

Acima de tudo, como diria Fernando Pessoa, a palavra escrita “escolhe quem a entenda, e não se subordina a quem a escolhe”. Da mesma forma, a tradução, livre das preocupações da originalidade, e embora ainda amarrada ao original, ganha a liberdade de não se subordinar ao leitor.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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